Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 9: Profilaxia
Dra Mariana Pezzute Lopes
Profilaxia de Endocardite Infecciosa: Qual a Importância e o que dizem as Diretrizes
A endocardite infecciosa (EI) é uma complicação grave e muitas vezes fatal. A profilaxia é essencial para reduzir o risco dessa infecção em pacientes suscetíveis, especialmente durante procedimentos que podem causar bacteremia significativa.
Os estreptococos, que fazem parte da flora normal da orofaringe e do trato gastrointestinal, são responsáveis por pelo menos 50% dos casos de EI adquiridas na comunidade. A bacteremia provocada por estreptococos do grupo viridans ocorre em até 61% dos pacientes após extrações dentárias e cirurgias periodontais. Além disso, atividades rotineiras, como escovação de dentes e uso de fio dental, estão associadas a uma significativa carga de bacteremia espontânea, sendo de fundamental importância o foco também na prevenção não farmacológica da EI, incluindo consultas odontológicas regulares (3 a 4 vezes ao ano) e a manutenção de uma boa saúde bucal. Com relação à arte corporal, procedimentos como tatuagens e piercings, que são também grandes fontes de bacteremia, são contraindicados por todas as diretrizes, havendo diversos relatos na literatura de casos de EI com desfecho fatal.
A importância da profilaxia não medicamentosa para a EI é senso comum tanto na diretriz brasileira de valvopatias quanto nas diretrizes internacionais. Quando falamos de profilaxia farmacológica, o assunto é um pouco mais controverso e polêmico. A literatura carece de estudos randomizados e controlados que demonstrem a eficácia da profilaxia medicamentosa para EI. Sendo assim, em 2008, o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE), instituição britânica, propôs que não fosse realizada profilaxia para EI em nenhuma ocasião, devido à ausência de evidências robustas do benefício dessa prática rotineira. Como consequência observou-se uma diminuição da prescrição da profilaxia antibiótica antes de tratamentos dentários seguido de um aumento expressivo do número de casos de EI ao longo dos próximos anos. Dayer e colaboradores, em publicação de 2015, revelou essa tendência preocupante. Como podemos observar, a partir de março de 2008, o número de casos de endocardite infecciosa aumentou significativamente, superando a tendência histórica projetada, com um acréscimo de 35 casos a mais por mês do que o esperado, sendo este aumento significativo tanto para populações de alto risco para EI quanto para pacientes de baixo risco (Figura 1). Trata-se de um estudo bastante importante para a nossa prática clínica e que foi considerado na elaboração das recomendações da diretriz brasileira de valvopatias, sobretudo por trazer uma evidência observacional de que abolir totalmente a profilaxia antibiótica parece levar ao aumento da incidência de EI na população geral.
FIGURA 1: Dayer MJ, et al. Incidence of infective endocarditis in England, 2000-13: a secular trend, interrupted time-series analysis. Lancet. 2015 Mar 28;385(9974):1219-28.
Como já esperado, diante das controversas e falta de evidências robustas na literatura, as diretrizes brasileira, europeia e americana abordam a profilaxia farmacológica para EI de forma diferente:
- Diretriz Brasileira (2020): Reforça a necessidade de profilaxia em pacientes com valvopatias moderadas a graves e portadores de próteses valvares (mecânicas, biológicas ou endopróteses), especialmente em procedimentos odontológicos com alta probabilidade de bacteremia (classe I). A amoxicilina é a droga de escolha, com alternativas como clindamicina, claritromicina e azitromicina para alérgicos à penicilina. Para pacientes de MUITO ALTO RISCO*, a profilaxia antibiótica com gentamicina e ampicilina endovenosas antes de procedimentos não odontológicos é sugerida com classe de recomendação IIa.
- Diretriz Europeia (2023): Recomenda como classe I profilaxia em procedimentos dentários APENAS para pacientes de MUITO ALTO RISCO*, com uma recomendação menos forte (IIb) quando submetidos a outros tipos de procedimentos (geniturinários, gastrointestinais e trato respiratório).
- Diretriz Americana (2020): Considera razoável a profilaxia antibiótica antes de procedimentos dentários em pacientes de MUITO ALTO RISCO* (classe IIa) e NÃO recomenda a profilaxia para procedimentos que não envolvam a mucosa oral (classe III), independentemente do risco do paciente.
*São considerados PACIENTES DE MUITO ALTO RISCO, ou seja, risco elevado para EI grave:
- Portadores de prótese valvar cardíaca;
- História de EI prévia;
- Portadores de cardiopatia congênita não reparada ou corrigida parcialmente ou corrigida com material protético;
- Transplantado cardíaco com valvopatia residual.
Assim, vemos que no Brasil somos mais abrangentes na recomendação de profilaxia de EI, em partes motivados pela participação de uma grande parcela de população de baixa renda, que carece de atenção à saúde bucal, que seria o primeiro passo fundamental na prevenção da doença.
Referências Bibliográficas
- Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, Santis A, et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias – 2020. Arq. Bras. Cardiol. 2020;115(4):720-75.
- Dayer MJ, Jones S, Prendergast B, Baddour LM, Lockhart PB, Thornhill MH. Incidence of infective endocarditis in England, 2000-13: a secular trend, interrupted time-series analysis. Lancet. 2015 Mar 28;385(9974):1219-28.
- Delgado V et al. ESC Scientific Document Group , 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis: Developed by the task force on the management of endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) Endorsed by the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS) and the European Association of Nuclear Medicine (EANM), European Heart Journal, Volume 44, Issue 39, 14 October 2023, Pages 3948–4042.
- Otto CM, Nishimura RA, Bonow RO, Carabello BA, Erwin JP 3rd, Gentile F, Jneid H, Krieger EV, Mack M, McLeod C, O’Gara PT, Rigolin VH, Sundt TM 3rd, Thompson A, Toly C. 2020 ACC/AHA Guideline for the Management of Patients With Valvular Heart Disease: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2021 Feb 2;143(5):e72-e227.
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Qual é a importância e o que dizem as diretrizes sobre profilaxia de endocardite infecciosa?
No 9º episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa, Dra. Mariana Pezzute Lopes esclarece essas dúvidas e explica os detalhes das diretrizes brasileira, americana e europeia.
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