Devemos utilizar betabloqueadores nos pacientes com infarto agudo do miocárdio e com fração de ejeção normal?

Drs. Luciano Moreira Baracioli e Wendelly Beserra Silva

 

O uso de betabloqueador (BB) vem desde o início da década 70, quando da publicação do professor Eugene Braunwald et al, que demonstraram o racional fisiopatológico do uso dos BB nos pacientes acometidos por infarto agudo do miocárdio (IAM), com a notória redução da área de necrose e diminuição do consumo de oxigênio pelo miocárdio, ainda na era pré-reperfusão1.

Posteriormente, novos estudos se fizeram necessários para avaliar o papel dos BB frente à terapia de reperfusão; sendo o estudo COMMIT um dos principais. Neste estudo foram avaliados cerca de 45.000 pacientes com IAM com até 24 horas de evolução (maioria submetida à terapia fibrinolítica) e randomizados para uso de metoprolol IV seguido de VO “versus” placebo. Nenhum dos dois desfechos primários apresentou diferença significativa até a alta hospitalar ou até 4 semanas: 1- morte, reinfarto ou para cardiorrespiratória (9,4% no grupo metoprolol versus 9,9% no placebo, p=0,1); 2- mortalidade por qualquer causa (7,7% versus 7,8%, p=0,69)2

No contexto dos pacientes pós-IAM com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) reduzida é bem sabido a importância do uso dos BB na redução de “desfechos duros”, incluindo mortalidade; e as diretrizes (nacional e internacionais) recomendam o seu uso como classe I e nível de recomendação A. 

Contudo, e nos pacientes infartados com FEVE normal? Como seguem essas evidências?

Estudo nacional publicado em 2018 analisou a mortalidade a curto e longo prazos (até 17 anos) em 2921 pacientes com síndrome coronária aguda sem elevação do segmento ST quanto ao uso ou não de BB nas primeiras 24 horas e na alta hospitalar. E o uso de BB na alta foi significativamente eficaz somente para os pacientes com FEVE < 55%, não havendo diferença de mortalidade no longo prazo naqueles pacientes com FEVE > 55%3.  

Mais recentemente, tivemos a publicação do estudo REDUCE-AMI, realizado na Nova Zelândia, Estônia e majoritariamente na Suécia (95% da amostra). Estudo prospectivo, aberto e que randomizou, entre 2017 e 2023, um total de 5020 pacientes com IAM, que foram submetidos à cineangiocoronariografia e apresentavam FEVE >50%, para uso a longo prazo de Metoprolol (ao menos 100 mg 1 vez ao dia) ou Bisoprolol (ao menos 5mg 1 vez ao dia) versus “não BB” (distribuição 1:1). A mediana da idade foi de 65 anos, 22,5% do sexo feminino, 35% tiveram IAM com elevação do segmento ST e intervenção coronária percutânea foi realizado em 95,5% dos pacientes. A mediana de seguimento foi de 3,5 anos e o desfecho primário (composto de morte por todas as causas e reinfarto) não apresentou diferença estatística (7,9% no grupo BB e 8,3% no grupo “não BB”, HR=0,96; IC 95%=0,79-1,16; P=0,64). Também não houve diferença entre os grupos em relação aos desfechos secundários (morte de qualquer causa ou cardiovascular, infarto do miocárdio, hospitalização por fibrilação atrial ou por insuficiência cardíaca) e desfechos de segurança (hospitalização por bradicardia, bloqueio AV de segundo ou terceiro grau, hipotensão, síncope ou asma).

Portanto, evidências importantes vêm surgindo para o não uso rotineiro de BB a longo prazo (ou mesmo após alta hospitalar) no pacientes pós-IAM e com FEVE preservada. 

Referências: 

  1. Maroko PR, Kjekshus JK, Sobel BE, et al. Factors influencing infarct size following experimental coronary artery occlusions. Circulation. 1971 Jan;43(1):67-82. 
  2. Chen ZM, Pan HC, Chen YP, et al; COMMIT (ClOpidogrel and Metoprolol in Myocardial Infarction Trial) collaborative group. Early intravenous then oral metoprolol in 45,852 patients with acute myocardial infarction: randomised placebo-controlled trial. Lancet. 2005 Nov 5;366(9497):1622-32.
  3. Nicolau, J.C., Furtado, R.H.M., Baracioli, L.M. et al. The Use of Oral Beta-Blockers and Clinical Outcomes in Patients with Non-ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes: a Long-Term Follow-Up Study. Cardiovasc Drugs Ther 201;32:435–442.
  4. Yndigegn T, Lindahl B, Mars K, et al. Beta-Blockers after Myocardial Infarction and Preserved Ejection Fraction. N Engl J Med 2024 Apr 7;390. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38587241/

Lesão de Tronco de coronária esquerda: ICP vs. CRM Análise crítica dos principais estudos

Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa

 

A presença de lesão em TCE ≥ 50% desprotegido, constitui uma das principais indicações prognósticas de revascularização do miocárdio, dada extensa área de miocárdio em risco e alto risco de morte súbita. Portanto, recebe recomendação classe 1 pelas principais diretrizes mundiais. 

Por muito tempo, a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM), era o único método de revascularização possível. No entanto, com o avanço das novas plataformas de stents e o uso de imagem intravascular, como o ultrassom intravascular (IVUS), a intervenção coronária percutânea (ICP) contemporânea passou a fazer parte do arsenal terapêutico da lesão de TCE. 

A primeira evidência de que a revascularização poderia aumentar a sobrevida desses pacientes veio de uma sub análise dos 91 pacientes (dos 686 total do estudo), do ECR The Veterans Administration Coronary Artery Bypass Surgery Cooperative, na década de 1970, a qual evidenciou maior sobrevida nos pacientes submetidos à CRM vs. tratamento clínico (TC) da época.  A análise do registro CASS clínico (dos pacientes que não entraram no estudo randomizado) mostrou que a presença de estenose ≥ 50% em TCE (excluíram TCE ≥ 70%) é um forte preditor de mortalidade em pacientes que ficam em TC exclusivo. Posteriormente, uma metanálise de subestudos nessa população, corroborou o benefício da CRM. Desde então, nunca mais ninguém se atreveu a randomizar esses pacientes para TC, muito embora, nessa época, a CRM ainda se valesse de enxertos venosos e o TC de betabloqueador e nitrato, estando ambos aquém do ideal. Dessa forma, com o advento dos enxertos arteriais e stents farmacológicos de última geração, a comparação entre intervenção coronária percutânea (ICP) e CRM se fez necessária. 

Nos anos 2000, a análise dos  705 pacientes com lesão de TCE do estudo SYNTAX, um ECR de não inferioridade, que randomizou pacientes com DAC triarterial ou lesão de TCE ≥ 50% para ICP vs. CRM, mostrou que na avaliação pro tercis de Syntax dos pacientes com lesão de TCE, quando o Syntax Score foi baixo (0-22) ou intermediário (23-32), a ICP foi não inferior à CRM aos 5 anos de seguimento para o desfecho composto de (morte por todas as causas, infarto, acidente vascular encefálico (AVE) ou revascularização adicional (MACCE). Contudo, no tercil de maior complexidade anatômica (Syntax Score >32), a ICP cursou com maiores taxas de MACCE, porém sem diferença em mortalidade. A justificativa se insere no fato de que o TCE grave com Syntax Score > 32 denota acometimento multiarterial concomitante, condição na qual a CRM já se mostrou soberana. Outrossim, a natureza das duas intervenções é distinta, a CRM possui maior capacidade em alcançar a revascularização completa por “by passar” todo o território pós estenose, protegendo o indivíduo de eventos isquêmicos futuros causados por lesões que venham a se desenvolver e instabilizar, ao passo que a ICP trata apenas lesões focais. De fato, o estudo mostrou maiores taxas de revascularização completa (63,2 %) com a CRM, do que com a ICP (56,7%) p=0,005. O estudo de sobrevida de 10 anos não mostrou diferença em mortalidade. Em 2011, o estudo PRECOMBAT (Premier of Randomized Comparison of Bypass Surgery versus Angioplasty Using Sirolimus-Eluting Stent in Patients with Left Main Coronary Disease), mostrou que a ICP com sirolimus foi não inferior à CRM em termos de MACCE.

Já na seara dos estudos contemporâneos designados à comparar ICP vs. CRM na lesão grave em TCE, foram desenhados o NOBLE (Nordic-Baltic-British Left Main Revascularization) e o EXCEL (The randomized clinical trials of left main coronary artery revascularization). 

O estudo NOBLE foi um ECR que avaliou a não inferioridade da ICP com SF revestido por biolimus com polímero biodegradável vs. CRM, apenas em pacientes com acometimento de TCE≥ 50% ou com FFR <0,8 e no máximo 3 lesões adicionais não complexas, cuja mediana do Syntax Score foi de 22,5. No primeiro ano de seguimento as taxas de MACCE foram semelhantes entre os grupos, ao passo que no seguimento de 5 anos, a ICP cursou com maiores taxas de MACCE, sendo esta diferença impulsionada por IAM espontâneo e revascularização adicional, sem haver, no entanto, diferenças significativas em mortalidade geral e cardiovascular ou AVC.

O polêmico estudo EXCEL, também de não-inferioridade, se propôs a avaliar pacientes com lesão de TCE de baixa ou moderada complexidade (Syntax Score < 33) para ICP com SF revestido de everolimus com polímero durável Xience vs. CRM. Diferentemente do NOBLE, o EXCEL conseguiu demonstrar a não inferioridade da ICP frente à CRM para o desfecho primário composto de morte por todas as causas, IAM (embora tenha incluído IAM peri-procedimento e espontâneo) ou AVC (ICP 22% vs. CRM 19%). Os autores concluíram que as duas intervenções são equivalentes. No entanto, algumas observações foram feitas por parte da comunidade médica na época da publicação, e que de fato devem ser levadas em consideração na tomada de decisão.  A primeira foi o aumento significativo de morte geral do desfecho secundário (com todas as considerações de ser desfecho secundário) justificada pelos autores como sendo ao acaso e sem diferença para morte de causa cardíaca. A inclusão de AVE nos desfechos, claramente desfavorece a CRM, e, de fato, houve mais AVE  0-30 dias, embora a maioria fosse acidente vascular transitório (AIT) e sem diferença no longo prazo. A inclusão de IAM peri-procedimento foi inadequada, primeiro porque não tem o mesmo impacto que IAM espontâneo, depois que a definição de IAM, nesse estudo, não seguiu a classificação universal, considerando apenas o valor enzimático como critério. Além disso, foi utilizado o mesmo ponto de corte de CKMB para IAM peri-procedimento entre ICP e CRM, o que claramente desfavorece a CRM, na qual a injúria é sabidamente maior. Outro ponto é que, em estudos de não inferioridade, admite-se uma margem na qual o procedimento pode ser inferior ao padrão e mesmo assim é considerado não inferior, o que não é o mesmo que equivalentes. Além disso, a análise intention-to-treat em estudos de não-inferioridade pode favorecer a hipótese do autor, funcionado como viés. 

Apesar dessas observações, o EXCEL foi um estudo bem desenhado e que, juntamente com o NOBLE, fomentou evidências robustas acerca da ICP vs. CRM em pacientes com lesão grave em TCE. 

Mas como fica na prática: ICP vs. CRM? 

A última diretriz de revascularização do miocárdio da AHA/ACC 2021 mantém a CRM como tratamento padrão na lesão grave em TCE, com recomendação classe 1 NE. A ICP ficou como opção com classe 2a, independente do valor do Syntax, o que configurou um upgrade quando comparado a diretriz europeia, na qual a ICP com syntax ≥ 33 era classe III, pois ainda não tínhamos os resultados do EXCEL e NOBLE.    

De fato, a recomendação 2a quando baixa ou intermediária complexidade anatômica parece bem apropriada, principalmente em pacientes cujo risco cirúrgico é alto ou quando há fragilidade. Contudo, a grande questão recai no  gerenciamento dos pacientes com lesão de TCE≥ 50% multiarteriais e Syntax Score > 33, já que esse foi o subgrupo que pior se saiu com a ICP do estudo SYNTAX, e, a esse respeito, nem o EXCEL e nem o NOBLE, possuem robustez suficiente, visto que nos dois estudos o Syntax score era < 33. Diferenciar lesão de TCE isolada de TCE + 2 ou 3 vasos é de suma importância para uma decisão assertiva, que deve ser individualizada e considerar outras características para a tomada de decisão, como fragilidade, factibilidade técnica e risco cirúrgico.

Considerando o EXCEL e o NOBLE, as taxas de eventos foram extremamente baixas quando comparadas aos mais antigos, provavelmente devido à utilização de novas tecnologias, como IVUS e stents de última geração. Deve-se considerar que esta não é a realidade da maioria dos centros brasileiros, logo ao pensar em indicar ICP na lesão de TCE, certifique se o hospital possui o arsenal tecnológico utilizado por esses estudos, bem como hemodinamicistas experientes. Nesse cenário, a tomada de decisão em conjunto com um Heart Team, torna-se de suma importância.

Referências: 

  1. Veterans Administration Coronary Artery Bypass Surgery Cooperative Study Group. Eleven-year survival in the Veterans Administration randomized trial of coronary bypass surgery for stable angina. N Engl J Med. 1984 Nov 22;311(21):1333-9.

 

  1. Myers WO, Davis K, Foster ED, Maynard C, Kaiser GC. Surgical survival in the Coronary Artery Surgery Study (CASS) registry. Ann Thorac Surg. 1985 Sep;40(3):245-60.

  2. Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, et al.; ESC Scientific Document Group. 2018 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan 7;40(2):87-165.

  3. Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S et al.; 2021 ACC/AHA/SCAI Guideline for Coronary Artery Revascularization: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2022 Jan 18;145(3): e18-e114.

  4. Mohr FW, Morice MC, Kappetein AP et al.; Coronary artery bypass graft surgery versus percutaneous coronary intervention in patients with three-vessel disease and left main coronary disease: 5-year follow-up of the randomised, clinical SYNTAX trial. Lancet. 2013 Feb 23;381(9867):629-38.

  5. Park DW, Ahn JM, Park H etal.; Ten-Year Outcomes After Drug-Eluting Stents Versus Coronary Artery Bypass Grafting for Left Main Coronary Disease: Extended Follow-Up of the PRECOMBAT Trial. Circulation. 2020 May 5;141(18):1437-1446.

  6. Holm NR, Mäkikallio T, Lindsay MM et al.; Percutaneous coronary angioplasty versus coronary artery bypass grafting in the treatment of unprotected left main stenosis: updated 5-year outcomes from the randomised, non-inferiority NOBLE trial. Lancet. 2020 Jan 18;395(10219):191-199.

  7. Azzalini L, Stone GW. Percutaneous Coronary Intervention or Surgery for Unprotected Left Main Disease: EXCEL Trial at 5 Years. Interv Cardiol Clin. 2020 Oct;9(4):419-432.

 

FIRE Trial: e nos idosos, devemos tratar somente o vaso culpado ou revascularização completa após coronariopatia aguda?

Luciano Moreira Baracioli

Evidências científicas surgiram avaliando se o tratamento completo (revascularização do vaso culpado e de obstruções residuais) seria superior ao tratamento isolado do vaso culpado e qual seria o melhor momento para realizá-lo, nos pacientes após infarto agudo do miocárdio. O estudo mais recente sobre o assunto é o COMPLETE (1), que randomizou 4041 pacientes, com infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST (IAMcomESST) tratados por intervenção coronária percutânea (ICP) primária, para uma abordagem apenas do vaso culpado versus revascularização completa. O grupo de revascularização completa, que realizava a ICP de forma estadiada (durante internação – tempo médio de 1 dia, ou após a alta hospitalar – tempo médio de 23 dias – com no máximo 45 dias da randomização), demonstrou redução significativa do desfecho primário de morte cardiovascular ou infarto do miocárdio (7,8% vs 10,5%, HR=0,74; IC 95% = 0,60-0,91; p = 0,004). Porém salienta-se que a idade média desta população foi de 62 anos. Uma meta-análise (10 ensaios clínicos randomizados, totalizando 7.030 pacientes) demonstrou redução de óbito cardiovascular 2,5% vs 3,1% (OR=0,69; IC 95% = 0,48-0,99; p = 0,04) também a favor do tratamento completo nesta população com IAMCESST sem choque cardiogênico(2)

E como seria o comportamento dessa estratégia em pacientes idosos?

Estudo multicêntrico (FIRE Trial)(3), publicado em 2023, randomizou 1445 pacientes com ao menos 75 anos, admitidos com coronariopatia aguda (IAMcomESST ou IAMsemESST), que tenha sido feito ICP do vaso culpado com sucesso, e tenha doença multivascular, para tratamento isolado do vaso culpado versus tratamento completo guiado por fisiologia; randomização ocorreu no momento do procedimento índice em 877 pacientes (60,7%), e dentro das 48 horas após o procedimento nos 568 pacientes restantes (39,3%). Ressalta-se que a mediana da idade foi de 80 anos, 528 pacientes (36,5%) eram do sexo feminino, 509 (35,2%) apresentaram com IAMcomESST (64,8% de IAMsemESST), o intervalo entre o tratamento do vaso culpado e o tratamento do(s) vaso(s) não  culpado(s) teve mediana de 3 dias, e o acesso radial foi realizado em cerca de 93,5%.  O desfecho primário composto de morte, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, ou necessidade de revascularização em 1 ano, ocorreu em 113 pacientes (15,7%) no grupo revascularização completa e em 152 pacientes (21,0%) no grupo revascularização isolada do vaso culpado (OR 0,73; 95% IC 0,57 – 0,93; P=0,01). Esse benefício foi devido à redução de cada componente individualmente, exceto a ocorrência de acidente vascular cerebral. Na tabela abaixo demonstramos os principais desfechos de eficácia e segurança.

Desfecho Revascularização Vaso Culpado (N=725) Revascularização Completa (N=113) OR (95% CI) P
Desfecho Primário
Morte, Infarto do Miocárdio, Acidente Vascular Cerebral, ou Revascularização Guiada por Isquemia 152 (21%) 113 (15,7%) 0.73 (0.57–0.93) 0.01
Desfecho Secundário Principal 
Morte Cardiovascular ou Infarto do Miocárdio 13,5% 8,9% 0.64 (0.47–0.88)
Outros Desfechos Secundários
Morte (qualquer causa) 12,8% 9,2% 0.70 (0.51–0.96)
Morte Cardiovascular  7,7% 5,0% 0.64 (0.42–0.97)
Infarto do Miocárdio  7,0% 4,4% 0.62 (0.40–0.97)
Morte ou Infarto do Miocárdio 18,3% 12,9% 0.68 (0.52–0.88)
Acidente Vascular Cerebral 1,0 1,7% 1.73 (0.68–4.40)
Revascularização Guiada por Isquemia 6,8% 4,3% 0.63 (0.40–0.98)
Desfecho de Segurança
Composto Injuria Renal Aguda Induzida pelo Contraste, AVC, ou Sangramento BARC 3,4, ou 5 20,4% 22,5% 1.11 (0.89–1.37) 0,37
Injuria Renal Aguda Induzida pelo Contraste 16% 17,9% 1.11 (0.87–1.42)
Sangramento BARC 3,4, ou 5 5,0% 4,7% 0.95 (0.59–1.53)

Sabemos que, em especial nesta população mais idosa, o objetivo do tratamento deve ser a manutenção da “qualidade de vida”, muito mais do que a extensão da mesma sem a devida qualidade. 

Portanto, conclui-se que essa população idosa, com maior número de comorbidades, mais frágil, e com maior frequência de eventos adversos, também apresentou benefícios quando submetido à revascularização completa, isto é, quando foram tratados o vaso culpado pela coronariopatia aguda (com ou sem elevação do segmento ST) e as lesões residuais guiadas por estudo fisiológico (reserva de fluxo coronariano).

Referências:

1 – Mehta SR, Wood DA, Storey RF, et al, for the COMPLETE Trial Investigators. Complete Revascularization with Multivessel PCI for Myocardial Infarction. N Engl J Med. 2019;381(15):1411–21. 

2 – Bainey KR, Engstrøm T, Smits PC, et al. Complete vs Culprit-Lesion-Only Revascularization for ST-Segment Elevation Myocardial Infarction: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Cardiol. 2020;5(8):881–8.

3 – S. Biscaglia, V. Guiducci, J. Escaned, et al, for the FIRE Trial Investigators. Complete or Culprit-Only PCI in Older Patients with Myocardial Infarction. N Engl J Med. 2023;389:889-98.

Revascularização do Miocárdio: quando indicar?

Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa

Descubra como a revascularização do miocárdio pode melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças cardíacas.

No cenário da doença arterial coronária (DAC) crônica, ainda que a essência do tratamento seja a mudança do estilo de vida e medicamentos para prevenção secundária, a indicação de revascularização do miocárdio, seja através da cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) ou intervenção coronária percutânea (ICP), se designa à melhora de prognóstico e/ou de sintomas refratários a terapia medicamentosa otimizada (TMO) na dose máxima tolerada. Esta última configura a maior parte das indicações, sendo o benefício prognóstico restrito a determinados perfis de pacientes.

No que tange o controle da angina e tolerância ao exercício, diversos ensaios clínicos randomizados (ECR) mostraram que a revascularização é mais efetiva do que a TMO isolada. Em subanálise do ISCHEMIA, quando comparada à estratégia conservadora, a revascularização (74% ICP e 26% CRM) foi superior na melhora da qualidade de vida inferida por angina. Contudo, vale lembrar que a isquemia miocárdica resulta de um complexo processo fisiopatológico, no qual a estenose fixa em coronária epicárdica é apenas uma das possíveis causas. Posto isto, a presença de obstruções moderadas que não justifiquem o quadro anginoso, deve motivar a investigação de outros mecanismos etiológicos envolvidos. Não é incomum que os sintomas se devam à disfunção microvascular e/ou vasoespasmo coronário, além de coexistir mesmo na estenose ≥ 70%. Cabe enfatizar que a CRM inadequada de lesões não obstrutivas, pode levar a progressão da DAC subjacente, ao passo que a ICP inadequada pode resultar em infarto agudo do miocárdio (IAM) periprocedimento, além de não melhorar a angina. Diante do pressuposto, indica-se tratamento intervencionista, visando a melhora da qualidade de vida na angina limitante, quando houver estenose coronária angiograficamente significativa ou hemodinamicamente significativa (FFR ≤ 0,80 ou iwFR ≤ 0,89).

O benefício prognóstico da revascularização consiste no aumento de sobrevida global, redução de IAM e morte cardiovascular. Para tanto, o maior benefício se impõe aos pacientes com DAC extensa e maior área de miocárdio sob risco. Outrossim, a ponderação da expectativa de vida se faz necessária, visto que a vantagem se dá no longo prazo. De acordo com as últimas diretrizes, as maiores evidências recaem sobre a lesão de TCE ≥ 50% com isquemia documentada ou ≥ 70% independente de outras características, a miocardiopatia isquêmica com FE ≤ 35% (se estendendo à FE ≤ 50% com menor evidência), artéria derradeira e DAC triarterial com acometimento da artéria descendente anterior (ADA) proximal. A isquemia ≥ 10%, que por anos foi uma indicação prognóstica de intervenção, a despeito de evidências oriundas de estudos observacionais, como Hachamovitch 2 e subanálises de ECR, perdeu esta indicação após a publicação do ISCHEMIA. No estudo FAME 2, embora a ICP (FFR ≤ 0,8) vs. TMO tenha reduzido o desfecho primário este foi impulsionado por redução de revascularização urgente, sem diferença para morte ou IAM.

De fato, estudos que compararam TMO vs. revascularização (ICP ou CRM), como MASS II, ERACI II, COURAGE e metanálises recentes incluindo o ISCHEMIA, não mostraram maior sobrevida global com a estratégia intervencionista inicial na população de DAC crônica em geral. No seguimento de 5,7 anos do ISCHEMIA EXTEND, a menor mortalidade cardiovascular no grupo intervencionista foi diluída por um aumento de morte por causas não cardíacas no mesmo grupo, resultando na ausência de diferença estatística em mortalidade por todas as causas, mas não ficou claro o motivo pelo qual ocorreram mais mortes não cardíacas. Não obstante, a tomada de decisão assertiva exige bom senso e individualização. Há de convir que há uma heterogeneidade quanto ao burden aterosclerótico nesses estudos, com uma tendência a serem de menor complexidade.  O conceito de prognóstico vai além da redução de óbito por todas as causas, muito utilizado como desfecho primário principal por estudos pragmáticos. Mesmo no ISCHEMIA, tivemos maior incidência de IAM espontâneo no grupo conservador, ao passo que a análise de subgrupo dos multiarteriais com lesões ≥ 70% do ISCHEMIA EXTEND, mostrou uma tendência de menor mortalidade cardiovascular com a revascularização.  Outrossim, pacientes com DAC são heterogêneos, muitas vezes excluídos dos ECR que guiam a nossa prática. O seguimento de 10 anos do estudo MASS II, no qual a DAC era mais complexa, a CRM cursou com menor incidência do desfecho composto primário de morte por todas as causas, IAM e angina com necessidade de nova revascularização, do que a TMO e ICP, guiado sobretudo por IAM e angina. Embora, não tenha ocorrido diferença estatística em termos de morte total, houve um incremento de quase o dobro em morte cardiovascular e IAM para o grupo em TMO isolada. Na seara da DAC com fração de ejeção ≤ 35%, novamente, apenas nos 10 anos de seguimento do STICH a CRM atingiu superioridade prognóstica sobre a TMO, ao passo que no REVIVED PCI, a ICP, com todas as ressalvas da população do estudo, a ICP não obteve o mesmo êxito.

Desde os resultados do estudo Veterans Administration Cooperative Study of Surgery for Coronary Arterial Occlusive Disease, mesmo o tratamento clínico da época sendo inferior ao que temos hoje, ninguém nunca teve a “audácia” de randomizar para TMO vs. intervenção os pacientes com lesão grave em TCE, dada extensa área de miocárdio em risco e, o mesmo raciocínio vale para lesão em artéria derradeira.

Dessa forma, haverá candidatos à TMO exclusiva, enquanto outros precisarão de algum tipo de intervenção ao longo da vida. Na ausência de sintomas ou características anatômicas de alto risco que justifiquem uma intervenção, a presença de isquemia não mais guia intervenção prognóstica isolada, mas ainda representa um marcador de DAC mais grave a depender dos achados associados a isquemia, como a dilatação ventricular no estresse ou queda ≥ 10 pontos da fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Isto posto, a escolha entre TMO isolada inicial e algum tipo de intervenção deve ser compartilhada com o paciente, informando-o sobre os riscos e benefícios de cada estratégia. Em alguns casos, caberá ao Heart Team, a tomada de decisão caso-a-caso. A figura 1, deve ser usada para auxiliar a escolha da estratégia inicial, mas não como guia definitivo, visto se tratar de decisões de probabilidade, nas quais qualquer fluxograma está aquém do ideal.

Figura 1: Fluxograma de indicação para revascularização do miocárdio

Fonte: Sousa LLCM, César LAM. Quando e como indicar a revascularização do miocárdio. Sociedade Brasileira de Cardiologia. PROCARDIOL Ciclo 17.

Referências:

 

  1. Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan;40(2):87–165. https://doi. org/10.1093/eurheartj/ehy394
  2. Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/ AHA/SCAI guideline for coronary artery revas- cularization: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Cir- culation. 2022 Jan;145(3):e18–114.
  3. WindeckerS,StorteckyS,StefaniniGG,daCosta BR, Rutjes AW, Di Nisio M, et al. Revascularisa- tion versus medical treatment in patients with stable coronary artery disease: network meta- -analysis. BMJ. 2014 Jun;348:g3859. https:// doi.org/10.1136/bmj.g3859
  4. Sousa LLCM, César LAM. Quando e como indicar a revascularização do miocárdio. In: Sociedade Brasileira de Cardiologia; Précoma DB, Freitas Junior AF, Mioto BM, Barros IML, Spineti PPM, organizadores. PROCARDIOL Programa de Atualização em Cardiologia: Ciclo 17. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2023. p. 9–58. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 2).
  5. MaronDJ, HochmanJS, ReynoldsHR, Bangalore S, O’Brien SM, Boden WE, et al. Initial invasive or conservative strategy for stable coronary disease. N Engl J Med. 2020;382(15):1395–407. https:// doi.org/10.1056/NEJMoa1915922
  6. Cesar LA, Ferreira JF, Armaganijan D, Gowdak LH, Mansur AP, Bodanese LC, et al.Diretriz de Doença Coronária Estável. Arq Bras Cardiol. 2014 Aug;103(2 Suppl 2):1–56. https:// doi.org/10.5935/abc.2014S004
  7. Virani SS, Newby LK, Arnold SV, Bittner V, Brewer LC, Demeter SH, et al. 2023AHA/ACC/ACCP/ASPC/NLA/PCNA Guideline for the Management of Patients With Chronic Coronary Disease: A Report of the American Heart Association/American College of Cardiology Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2023 Aug 29;148(9):e9-e119.
  8. Sousa LLCM, Gowdak LHW. Tratamento invasivo: Bases para a decisão. Insuficiência Coronária Crônca. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo, 2022; 32(4): 460-466.INSS 2595-4644-Versão online.

 

Select trial: Semaglutida na obesidade com aterosclerose manifesta

Dra. Luhanda Monti

Dra. Luhanda Monti Estima-se que até 2035 mais de 60% da população esteja acima do peso. Saiba como controlar o Select trial para evitar problemas cardiovasculares

Estima-se que até 2035 mais de 60% da população esteja acima do peso. Em 2015, o sobrepeso e a obesidade foram responsáveis por 4 milhões de mortes a nível mundial, das quais mais de dois terços se deveram às doenças cardiovasculares (CV).  A associação de sobrepeso e obesidade com a resistência insulínica e diabetes tipo 2 (DM2), dislipidemia e hipertensão, componentes da síndrome metabólica, explica porque podem elevar o número de mortes CV e doenças cardiometabólicas. Não obstante, estudos recentes advogam que a obesidade já é um fator de risco cardiovascular independente, visto o estado inflamatório e pró-trombótico crônico em que o indivíduo se encontra. 

Em pacientes com DM2, estudos robustos, como o SUSTAIN-6 (Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Patients with Type 2 Diabetes), já haviam mostrado o benefício da Semaglutida, um análogo do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), no que tange à redução dos desfechos cardiovasculares. No que diz respeito ao tratamento da obesidade e sobrepeso, a Semaglutida 2,4 mg (Wegovy) mostrou-se altamente eficaz nos estudos STEP (Semaglutide Treatment Effect in People with obesity) 1 e STEP 2, sendo aprovada pela ANVISA para uso no Brasil em 2023. No entanto, restava saber se em pacientes com sobrepeso e obesidade, mas sem DM2, a droga seria capaz de reduzir desfechos CV. 

Neste cenário foi desenhado o estudo SELECT (Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes). Trata-se de um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, multicêntrico, placebo controlado, cujas análises foram conduzidas com o princípio de intention-to-treat. O objetivo foi avaliar o impacto da Semaglutida 2,4 mg semanal na redução de eventos CV em pacientes com sobrepeso ou obesidade, sem diabetes e portadores de doença CV. Foram randomizados 17.604 participantes para receber Semaglutida 2,4 mg na dose máxima de 2,4 mg 1 vez por semana versus placebo.

Regime: 0,24 mg uma vez por semana e a dose foi aumentada a cada 4 semanas (para doses uma vez por semana de 0,5, 1,0, 1,7 e 2,4 mg)

Meta: Dose alvo de 2,4 mg a ser atingida após 16 semanas. 

Critérios de inclusão:

  • ≥ 45 anos
  • IMC ≥ 27
  • Doença CV: infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) ou doença arterial periférica (DAOP)

 

Critérios de exclusão:

  • Diabetes ou HbA1c≥ 6,5%
  • Uso de agonista de GLP1 ≤ 90 dias
  • Evento isquêmico agudo ≤ 60 dias
  • IC NYHA IV
  • Revascularização coronária planejada
  • Pancreatite
  • Neoplasia endócrina múltipla

 

Desfecho primário composto: Morte por causas CV, infarto do miocárdio não fatal ou acidente vascular cerebral não fatal em uma análise do tempo até o primeiro evento.

Desfechos secundários: Morte por qualquer causa; componentes individuais do desfecho primário.

A segurança também foi avaliada.

Com relação ao baseline, os grupos eram homogêneos, com predomínio do sexo masculino (72,5%), idade média de 61,6 ± 8,9 anos e IMC de 33,34 ± 5,04 kg/m2. Portanto, a maioria, já com obesidade de fato. No que tange às doenças CV prévias, chama a atenção que a maior parte, até 67% dos pacientes, tinha histórico de IAM, mais se parecendo um trial de doença coronária crônica (já que os agudos foram excluídos) em pacientes com sobrepeso ou obesidade, seguido por AVC (23,3%) e doença arterial periférica (8,6%). Além disso, 24,3% tinham diagnóstico de insuficiência cardíaca. Dois terços dos participantes (66%) tinham HbA na faixa de pré-diabetes (5,7%-6,4%). Entre os grupos de aumento da HbA1c, a prevalência de todos os fatores de risco CV aumentou.

 

Resultados:

A exposição média (±DP) à Semaglutida ou placebo de 34,2±13,7 meses. Após a o segmento médio de 39,8±9,4 meses, o desfecho composto primário ocorreu em 569 dos 8.803 pacientes (6,5%) no grupo Semaglutida e em 701 dos 8.801 pacientes (8,0%) no grupo placebo (taxa de risco, 0,80; intervalo de confiança de 95%, 0,72 a 0,90; P<0,001). Eventos adversos que levaram à descontinuação permanente do produto experimental ocorreram em 1.461 pacientes (16,6%) no grupo Semaglutida e 718 pacientes (8,2%) no grupo placebo (P<0,001).

 

Discussão

Desfechos:

 

Em pacientes do grupo Semaglutida, houve uma redução de 20% no risco de novos eventos CV (morte CV, AVC e IAM não fatais) e todos os três componentes do desfecho primário contribuíram para a redução de MACE demonstrada. Os desfechos secundários confirmatórios (morte CV, insuficiência cardíaca ou morte por qualquer causa) foram numericamente reduzidos no grupo Semaglutida; todavia, como a diferença entre os grupos em relação à morte por causas CV não atendeu ao valor P exigido para testes hierárquicos, o teste de superioridade não foi realizado para os demais desfechos secundários confirmatórios. Contudo, os benefícios foram consistentes em todos os subgrupos pré-especificados.

Perda ponderal e metabolismo:

 

Ao final do estudo, 77% dos pacientes alcançaram a dose máxima (2,4 mg), o que levou à perda ponderal de -9,4%, bem como redução da circunferência abdominal. A melhora de marcadores inflamatórios (principalmente PCR) foi significativa, chamando a atenção para redução da inflamação crônica.

Segurança e tolerância:

Semaglutida se mostrou segura, não havendo eventos fatais, sendo os eventos cardiovasculares significativamente mais frequentes no grupo placebo. Seus principais efeitos adversos foram os gastrointestinais, sendo significativamente mais frequentes no grupo Semaglutida. No geral, a droga foi bem tolerada, com taxa de descontinuação relacionada aos eventos adversos de 16%, em sua maioria, gastrointestinais

Conclusão:

Em pacientes com doença cardiovascular preexistente e com sobrepeso ou obesidade, mas sem diabetes, a semaglutida subcutânea na dose de 2,4 mg uma vez por semana foi superior ao placebo na redução do desfecho composto de morte por causas cardiovasculares, miocárdio não fatal infarto ou acidente vascular cerebral não fatal em um acompanhamento médio de 39,8 meses.

 

Key points

 

  • Redução ocorreu logo após o início do tratamento, com as curvas se abrindo muito precocemente;
  • Neste estudo, a Semaglutida reduziu o peso corporal em média 9,4%, o que é superior à redução alcançada com outras abordagens não cirúrgicas (atrás apenas da bariátrica que reduz até 20%);
  • Medicamentos da classe dos análogos do GLP-1 em animais com ou sem diabetes reduziram inflamação, melhoraram a função endotelial e ventricular esquerda, além de terem estabilizado a placa aterosclerótica e reduzido a agregação plaquetária;
  • Reduções no excesso de gordura corporal anormal melhoram o ambiente pró-inflamatório e pró-trombótico sistêmico associado à obesidade, além de reduzir também gordura perivascular;
  • Os efeitos vão além da perda de peso, redução de glicose e controle dos fatores de risco tradicionais;
  • Evidências sugerem efeitos pleiotrópicos e cardiometabólicos por múltiplas vias interligadas;
  • A incidência de eventos adversos graves foi menor entre os pacientes designados para receber Semaglutida do que entre aqueles designados para receber placebo.

 

 

Referência:

 

Lincoff AM, Brown-Frandsen K, Colhoun HM, Deanfield J, Emerson SS, Esbjerg S, et al. SELECT Trial Investigators. Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes. N Engl J Med. 2023 Dec 14;389(24):2221-2232. doi: 10.1056/NEJMoa2307563. Epub 2023 Nov 11.

 

Estetoscópio digital + Inteligência artificial = maior detecção de sopros?

Dr. Renato Nemoto

Com o desenvolvimento da tecnologia no campo da medicina, diariamente surgem equipamentos que possibilitam maior acurácia no diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares.

Com o desenvolvimento da tecnologia no campo da medicina, diariamente surgem equipamentos que possibilitam maior acurácia no diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares. O mais “básico” instrumento de trabalho do cardiologista, o estetoscópio, também recebeu inovações.

Os estetoscópios digitais, que possibilitam aumento de volume, gravação de sons, transmissão em tempo real, estão cada vez mais difundidos entre estudantes, residentes e cardiologistas. Contudo, é possível dizer que eles detectam mais sopros em relação aos estetoscópios tradicionais?

Em novembro de 2023, foi apresentada na AHA Scientific Sessions a prévia de um estudo que avaliou a capacidade de profissionais de saúde detectarem alterações valvares por meio da ausculta com um estetoscópio tradicional e um digital com a capacidade de gerar um fonograma analisado por meio de inteligência artificial. 369 pacientes acima de 50 anos sem diagnóstico prévio de valvopatia foram avaliados. 

Após a ausculta, um ecocardiograma foi realizado para avaliar e quantificar possíveis valvopatias. A inteligência artificial mostrou uma maior sensibilidade, detectando 94% das valvopatias, enquanto a avaliação por meio de estetoscópio tradicional detectou 41%. Contudo, foi menos específica (84% vs 95% da avaliação tradicional). O estudo completo ainda será publicado com as demais informações.

O que outros estudos mostram?

Silverman e Balk em 2018 publicaram um estudo com a impressão subjetiva, por um profissional da saúde, da comparação da qualidade de som (volume, nitidez, tonalidade) de um estetoscópio digital comparado com estetoscópio tradicional. Dos 952 exames realizados, a impressão de superioridade do equipamento digital ocorreu em 95% dos casos. 

Outro estudo de 2018 avaliou esse cenário no ensino da semiologia. Oito estudantes de medicina foram avaliados em relação à sua capacidade de detecção de alterações de sons cardíacos e pulmonares utilizando os dois tipos de estetoscópio. Como resultado, houve um aumento na correta detecção de sopros de 10% em favor dos estetoscópios digitais.

É um tema polêmico, difícil de ser estudado, uma vez que diversas variáveis estão envolvidas, não só em relação às variações de qualidade dentre os diversos estetoscópios digitais e tradicionais, mas também devido às próprias diferenças naturais na qualificação da ausculta cardíaca entre os profissionais de saúde. 

Como visto, esse tema ainda não possui uma conclusão e será cada vez mais explorado. A tendência é de que a tecnologia possa potencializar tanto a prática diária quanto o ensino médico. 

Uma atenção necessária para além da capacidade de detecção de valvopatias vai para a correta graduação da gravidade da doença. A potencial maior detecção de sopros deve vir acompanhada da correta correlação com sua importância anatômica, para dessa forma evitar exames e procedimentos desnecessários.

 

Segurança Cardiovascular da Terapia de Reposição com Testosterona

Dr. Roger Godinho

Uma saúde cardíaca ideal. Reveja conselhos práticos sobre ocorrências e prevenção de problemas cardiovasculares.

Em meio às inúmeras discussões sobre suplementação hormonal para fins de ganho de massa muscular e melhora do desempenho esportivo, a segurança cardiovascular do uso médico da terapia de reposição com testosterona em homens de meia-idade e idosos com hipogonadismo surge como um tema de intenso debate e interesse clínico significativo. Historicamente, a terapia de reposição com testosterona tem sido utilizada para tratar os sintomas de hipogonadismo, condição caracterizada por baixos níveis de testosterona, que pode afetar negativamente a qualidade de vida, a saúde sexual, a massa óssea, e a composição corporal. No entanto, o impacto dessa terapia na saúde cardiovascular dos pacientes permanece um campo de investigação aberto, marcado por preocupações e dados conflitantes.

O estudo TRAVERSE, publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) em julho de 2023, foi concebido para elucidar essas incertezas, investigando os efeitos da terapia de reposição com testosterona na incidência de eventos cardíacos adversos maiores em um grupo específico de homens com alto risco cardiovascular. Este estudo assume uma importância particular no contexto atual da prática médica, onde a tomada de decisão clínica deve ser justificada por evidências claras e confiáveis, especialmente em tratamentos que afetam uma parcela significativa da população masculina.

 

O estudo TRAVERSE foi um ensaio clínico multicêntrico, randomizado, duplo-cego, controlado por placebo e de não inferioridade. Foram randomizados 5246 homens entre 45 e 80 anos com doença cardiovascular pré-existente ou alto risco de desenvolvê-la, que reportaram um ou mais sintomas de hipogonadismo, como diminuição do desejo sexual, diminuição do número de ereções espontâneas, fadiga, humor depressivo, diminuição de pelos axilares, púbicos ou diminuição da frequência do barbear ou fogachos. Além disso, os indivíduos precisavam apresentar duas medidas de testosterona em jejum menores que 300 ng/dL. Doença cardiovascular foi definida como evidência clínica ou angiográfica de doença arterial coronariana, doença cerebrovascular ou doença arterial periférica. O aumento do risco cardiovascular foi definido pela presença de três ou mais dos seguintes fatores de risco: hipertensão, dislipidemia, tabagismo atual, doença renal crônica estágio 3, diabetes, níveis elevados de proteína C-reativa de alta sensibilidade, idade maior que 65 anos, ou um escore de cálcio coronariano acima do percentil 75 para idade e raça. A partir disso, os participantes foram aleatoriamente designados para receber gel de testosterona a 1,62%, transdérmico, ou placebo. A dose de testosterona foi ajustada com o intuito de manter os níveis séricos entre 350 e 750 nd/dL no grupo “testosterona”. No grupo placebo a dose foi ajustada utilizando o método sham*. O objetivo principal foi avaliar a ocorrência do primeiro evento de um composto de morte por causas cardiovasculares, infarto do miocárdio não fatal ou acidente vascular cerebral não fatal.

 

Os pacientes foram tratados durante uma média de 21,7 meses e acompanhados por 33,0 meses. O desfecho primário foi observado em 182 (7,0%) indivíduos no grupo de testosterona e 190 (7,3%) no grupo placebo. Não foram observadas diferenças clinicamente significativas na incidência de eventos cardiovasculares secundários entre os grupos de estudo. Entretanto, a incidência de embolia pulmonar foi maior no grupo da testosterona (0,9% vs. 0,5% no grupo placebo). As arritmias não fatais que exigiram intervenção ocorreram em 134 pacientes (5,2%) no grupo da testosterona e em 87 pacientes (3,3%) no grupo placebo (P = 0,001); fibrilação atrial ocorreu em 91 pacientes (3,5%) e 63 pacientes (2,4%), respectivamente (P = 0,02), e lesão renal aguda ocorreu em 60 pacientes (2,3%) e 40 pacientes (1,5%), respectivamente (P = 0,04). O câncer de próstata ocorreu em 12 pacientes (0,5%) no grupo da testosterona e em 11 pacientes (0,4%) no grupo placebo (P = 0,87). 

 

Esses dados demonstram a não inferioridade da testosterona em relação ao placebo quanto ao risco de eventos cardíacos adversos maiores, a despeito do aumento na incidência de fibrilação atrial, lesão renal aguda e embolia pulmonar no grupo tratado com testosterona.

 

O artigo conclui que a terapia de reposição com testosterona, quando comparada com placebo, não resultou em um aumento do risco cardiovascular global em homens com hipogonadismo e elevado risco cardiovascular. Contudo, chama atenção a maior frequência de outros eventos adversos, o que levanta questões importantes sobre o perfil de segurança da terapia em determinadas populações (portadores de doença renal crônica, arritmia atrial, trombofilia ou indivíduos com antecedentes de eventos tromboembólicos), e da necessidade de um acompanhamento individual rigoroso.

 

Pontos Fortes

Amostra e Desenho do Estudo: Grande tamanho amostral e um desenho de estudo meticuloso reforçam a validade dos resultados.

Relevância Clínica: Fornece dados cruciais que podem guiar práticas clínicas na terapia de reposição de testosterona.

Robustez Estatística: Análises estatísticas rigorosas e bem fundamentadas.

 

Pontos Fracos

Generalização: A seleção de participantes com alto risco cardiovascular pode limitar a aplicabilidade dos resultados a uma população mais ampla.

Adesão e Retenção: Taxas de adesão e retenção relativamente baixas podem ter influenciado os resultados.

 

* O método sham é uma técnica utilizada em estudos clínicos para simular uma intervenção médica ou cirúrgica. Ele serve como um controle placebo, onde os participantes passam por um procedimento falso que imita o real em todos os aspectos, exceto pelo fato de que a intervenção terapêutica efetiva não é realmente realizada. Isso permite aos pesquisadores testar os efeitos da expectativa e do condicionamento psicológico em estudos para determinar a eficácia real de um tratamento.

 

Referência

  1. Lincoff, A. M. et al. (2023). Cardiovascular safety of testosterone-replacement therapy. The New England Journal of Medicine, 389(2).

Ascensão e queda da Ischemia ≥ 10% na revascularização miocárdica – Parte 2: O racional prático

Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa

Revascularização miocárdica: ISCHEMIA ≥ 10% foi usada como ponto de corte para melhora da sobrevida na DAC, confira dicas na Dra. Luhanda.

Após anos utilizando a ISCHEMIA ≥ 10% como ponto de corte a partir do qual, a revascularização miocárdica estaria indicada para melhora de sobrevida na doença arterial coronária (DAC) crônica, com a publicação do ISCHEMIA trial, as diretrizes contemporâneas, abandonaram este quesito como fator prognóstico isolado para indicar a revascularização miocárdica, de tal modo que, atualmente, nos perguntamos se ainda há espaço para isquemia neste cenário.

O primeiro ponto a ser levantado é que, conforme explicado em post prévio: as bases que sustentavam essa indicação eram oriundas de estudos observacionais e somente após o ISCHEMIA é que tivemos dados robustos. No entanto, estes devem ser interpretados com cautela na prática clínica. O segundo ponto é que a presença de isquemia, sobretudo ≥ 10%, continua a configurar um sinal de gravidade em pacientes com DAC crônica, muito embora nenhum estudo robusto tenha conseguido demonstrar plausibilidade biológica que justifique a revascularização de rotina nesses indivíduos. 

Porquê da ascensão e queda isquemia ≥ 10%

Tudo começou com Hachamovitch 2, como descrito em post prévio. Posteriormente, os autores de um subestudo do COURAGE, até chegaram a sugerir que partindo de uma isquemia basal moderada a grave, a redução da isquemia residual ≥ 5% poderia ser um alvo terapêutico. No entanto, isto foi apenas uma sugestão, pois a correlação com redução de morte cardiovascular (CV) e infarto agudo do miocárdio (IAM)  ocorreu apenas pelo modelo não ajustado (p= 0,001), sem diferença para o modelo ajustado ao risco (p=0,08).  A esse respeito, no ISCHEMIA trial, pacientes com DAC crônica e isquemia moderada a importante, tanto o seguimento de 3,2 anos quanto o de 5,7 anos, a revascularização não diferiu do tratamento conservador em termos de mortalidade geral. Embora análises posteriores tenham mostrado uma redução de IAM espontâneo e melhora de angina e redução de morte CV em pacientes do grupo intervenção, estas foram sub análises de um estudo com desfecho primário negativo. Dessa forma, tais dados devem ser considerados de forma individualizada na tomada de decisão, mas com cautela, pois também devemos considerar que houve um aumento de morte por causas não CV no mesmo grupo.  As sub-análises do ISCHEMIA EXTEND, revelaram que a gravidade da isquemia se associou com IAM, ao passo que a presença de DAC extensa (escore prognóstico de Duke modificado) se associou não somente ao IAM, como também a maior mortalidade CV. Não obstante, no que tange a sub-análise de completude da revascularização em 1801 pacientes do grupo intervenção do ISCHEMIA, quando comparados aos pacientes do grupo conservador,  a revascularização anatômica completa reduziu os eventos ajustados de morte e IAM em 3,5% aos 4 anos (95% CI: -7,2% a 0,0%), ao passo que a revascularização funcional completa redução as taxas de eventos em apenas 2,7% (95% CI: -5,9% a 0,3%). Tais resultados corroboram dados pregressos do estudo, que já mostravam que a complexidade anatômica, parece ser um preditor mais relevante do que a isquemia em termos de eventos CV e  resposta à revascularização. 

O que dizem as diretrizes: 

Em 2021, a ACC/AHA/SCAI Coronary Revascularization guideline, incorporou os resultados do ISCHEMIA, não mais indicando intervenção para prognóstico baseado apenas no grau de  isquemia. Outrossim, deu um “downgrade” para IIb nas indicações de revascularização visando reduzir mortalidade global e IIa com o objetivo de reduzir morte CV e IAM, em pacientes multiarteriais, na ausência de lesão de tronco de coronária esquerda (TCE) ou disfunção ventricular e nem mesmo citou isquemia neste cenário. Não obstante, o guideline 2023 AHA/ACC/ACCP/ASPC/NLA/PCNA Chronic Coronary Disease, direcionou os testes funcionais como estratificadores de risco CV e auxiliar na tomada de decisão de casos duvidosos ou em pacientes com sintomas novos ou em piora, mas também não inclui a ISCHEMIA ≥ 10% para indicar intervenção por prognóstico de maneira isolada. 

Mas afinal, ainda há espaço para teste de isquemia? Como utilizá-lo na prática? 

Opinião de especialista:

Do ponto de vista prático, a isquemia ≥10%, continuará a motivar a estratificação anatômica, até porque, é um marcador de pior prognóstico. Além disso, todos os pacientes do ISCHEMIA trial, tiveram lesão de TCE excluída, seja por angiotomografia de coronárias ou cateterismo cardíaco  prévio. No que tange a indicação de revascularização por prognóstico, é provável que fique a cargo da anatomia e seu burden aterosclerótico, de acordo com o número e localização das lesões, ou seja, se estamos diante de uma anatomia de alto risco, como no caso da lesão em TCE e artéria derradeira e multiarteriais com lesões suboclusivas, bem como da função ventricular. Obviamente que nestes casos, a presença de isquemia definitivamente traduz a gravidade. 

Neste cenário, a isquemia passa a ter um papel complementar na tomada de decisão, sobretudo na presença de sintomas duvidosos ou lesões ambíguas, mas não deve ser usada como fator prognóstico isolado. 

Testes de isquemia como divisor de águas para tomada de decisão em conjunto com outras características: 

  • Revascularização indicada por angina atípica, cuja análise do sintoma gera dúvidas;
  • Presença de disfunção ventricular, a isquemia moderada-importante em território correspondente à artéria estenosada, sobretudo quando há dúvida acerca da etiologia da disfunção, funcionalidade de lesões moderadas e excêntricas e até mesmo quando dúvida acerca da efetividade da revascularização, já que quem tem isquemia, tem viabilidade;
  • Dúvida quanto a funcionalidade de lesões excêntricas em cenários diversos;
  • Nestes cenários, com certeza, testes isquêmicos continuarão exercendo o seu papel.

 

Referências

  1. Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan;40(2):87–165. https://doi. org/10.1093/eurheartj/ehy394
  2. Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/ AHA/SCAI guideline for coronary artery revas- cularization: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Cir- culation. 2022 Jan;145(3):e18–114.
  3. Anthopolos R, Maron DJ, Bangalore S, Reynolds HR, Xu Y, O’Brien SM, Troxel AB, Mavromichalis S, Chang M, Contreras A, Hochman JS on behalf of ISCHEMIA-EXTEND Research Group. American Heart Journal. 2022 Oct 04.
  4. Stone, Gregg W et al. “Impact of Complete Revascularization in the ISCHEMIA Trial.” Journal of the American College of Cardiology vol. 82,12 (2023): 1175-1188. doi:10.1016/j.jacc.2023.06.015.
  1. Virani SS, Newby LK, Arnold SV, et al. 2023 AHA/ACC/ACCP/ ASPC/NLA/PCNA Guideline for the Management of Patients With Chronic Coronary Disease: A Report of the American Heart Association/American College of Cardiology Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol 2023.

Ascensão e queda da isquemia ≥ 10% na revascularização miocárdica: parte 1: O racional científico

Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa

Por muito tempo a presença de isquemia ≥ 10%, foi utilizada como ponto a partir do qual, a revascularização miocárdica estaria indicada para melhora de prognóstico, a despeito das evidências oriundas de estudos observacionais e sub análises de ensaios clínicos randomizados (ECR). O principal estudo a sustentar as recomendações de diretrizes foi o Hachamovitch 2, um estudo observacional que, segundo os autores, foi projetado para “imitar” um ECR através do escore de propensão.

A conclusão foi que o aumento da carga isquêmica (entre 0 a 10-12,5%) se associou à maior probabilidade de cirurgia de revascularização miocárdica (CRM), que por sua vez, melhorou a sobrevida na presença de isquemia moderada (≥ 10%) à importante (≥ 20%),  quando comparada à terapia médica otimizada (TMO) isolada. Contudo, uma análise minuciosa, mostra uma série de imperfeições metodológicas. Este foi um estudo observacional, logo, os grupos eram heterogêneos e não comparáveis (> 9000 pacientes na TMO e 671 no braço CRM). Além disso, não se sabe se todos os pacientes tinham doença arterial coronária (DAC) epicárdica, visto a ausência de dados sobre a anatomia coronária e o conhecimento atual acerca de outras causas para isquemia.

No estudo COURAGE, que comparou ICP vs.TMO em pacientes com DAC estável e pelo menos 1 lesão ≥ 70% com isquemia presente ou ≥ 80% sem isquemia, não houve  diferença  para sobrevida entre as duas estratégias. Um subestudo do COURAGE, envolvendo 314 pacientes com teste perfusional seriado (antes do tratamento e 6 e 18 meses) reportou que a redução ≥5% de isquemia nos pacientes submetidos à ICP, partindo de uma isquemia basal moderada a grave, se correlacionou à menor mortalidade CV e IAM no modelo não ajustado (p= 0,001), mas sem significância no modelo ajustado ao risco (p=0,08). A despeito da ausência de benefício estatisticamente significante na análise multivariada, os autores chegaram a sugerir uma redução de isquemia residual ≥ 5% como meta terapêutica. Nesse contexto, a isquemia ≥ 10% foi o ponto de corte sugerido pelo estudo COURAGE, para o qual, a revascularização traria benefício líquido.

A rápida ascensão da cardiologia intervencionista nos trouxe o FFR (Fractional Flow Reserve), uma forma de se avaliar a funcionalidade de lesões intermediárias, que usa a diferença de pressão de perfusão sob hiperemia máxima, podendo-se inferir isquemia. Os  resultados do FAME-2 mostraram redução no desfecho primário (revascularização não planejada morte por todas as causas e IAM não fatal) em pacientes com DAC estável e lesões ≥ 50% com FFR ≤ 0,80 vs. TMO.  Desde então, as diretrizes americanas e europeias de revascularização, advogam o uso do FFR para guiar a tomada de decisão da ICP em lesões moderadas com classe I de recomendação.

Com a premissa de responder a todas essas questões, o ISCHEMIA trial se propôs a avaliar se uma estratégia invasiva inicial com cinecoronariografia (CINE) e revascularização quando factível,  seria superior à conservadora inicial em pacientes com teste isquêmico não invasivo de alto risco ( isquemia ≥ 10%), excluindo lesão de TCE ≥ 50%, com angiotomografia de artérias coronárias (angio TCC), FE ≤ 35% e angina limitante. No seguimento de 3,2 anos, os autores concluíram que a estratégia invasiva não reduziu o desfecho primário composto, mesmo na vigência de DAC multiarterial e acometimento de artéria descendente anterior (ADA) proximal. A observação de que o grupo intervenção teve menores taxas de IAM espontâneo aos 4 anos e melhora na qualidade de vida inferida pelo controle de angina em posterior subanálise, é de suma importância para individualização de casos na vida real. Mais recentemente com mediana de seguimento de 5,2 anos, o ISCHEMIA EXTEND, mostrou menores taxas de morte CV 6,4%  no grupo intervenção vs. TMO 8,6% (p = 0,008), mas este benefício foi diluído pelo aumento de mortalidade não cardiovascular (infecção e neoplasia) no grupo intervenção 4,4% vs. 5,5%  TMO (p = 0,016), sem apresentar, no entanto, diferença em morte global. Algo já questionado, mas que ainda não obtivemos resposta. A ausência de associação entre o grau de isquemia e mortalidade por todas as causas (p para tendência = 0,33), bem como IAM (p para tendência = 0,04) e a forte associação entre DAC mais extensa (escore de Duke modificado)  com mortalidade por todas as causas (p para tendência < 0,001) e IAM (p para tendência < 0,001), vai de encontro ao fato de que a anatomia parece ser um preditor mais fidedigno de DAC de alto risco do que a isquemia.  

A diretriz americana de revascularização miocárdica  2021 ACC/AHA/SCAI Coronary Revascularization, parece ter incorporado os resultados do ISCHEMIA,  não mais indicando revascularização baseada na extensão de isquemia para melhora de sobrevida, como fez a  ESC em 2019. Além disso, fez um “downgrade” para IIb na recomendação de revascularização para melhora de sobrevida global e IIa para redução de morte CV e IAM, em pacientes multiarterias. 

Atualmente, a isquemia não deve ser utilizada de forma isolada para guiar revascularização por prognóstico, ao contrário, pode ser agregada a outras variáveis de forma individualizada, sobretudo nas discussões de Heart Team.

Embora seja um marcador de gravidade, as decisões acerca da  revascularização miocárdica ficam a cargo da anatomia (burden aterosclerótico) e função ventricular.

Referências
1. Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan;40(2):87–165. https://doi. org/10.1093/eurheartj/ehy394

2. Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/ AHA/SCAI guideline for coronary artery revas- cularization: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Cir- culation. 2022 Jan;145(3):e18–114.

3. MaronDJ, HochmanJS, ReynoldsHR, Bangalore S, O’Brien SM, Boden WE, et al. Initial invasive or conservative strategy for stable coronary disease. N Engl J Med. 2020;382(15):1395–407. https:// doi.org/10.1056/NEJMoa1915922

4. Windecker S, Stortecky S, Stefanini GG et al.; Revascularisation versus medical treatment in patients with stable coronary artery disease: network meta-analysis. BMJ. 2014 Jun 23;348: g3859.

5. Xaplanteris P, Fournier S, Pijls NHJ et al.; FAME 2 Investigators. Five-Year Outcomes with PCI Guided by Fractional Flow Reserve. N Engl J Med. 2018 Jul 19;379(3):250-259.

6. Weintraub WS, Spertus JA, Kolm P et al.; COURAGE Trial Research Group, Mancini GB. Effect of PCI on quality of life in patients with stable coronary disease. N Engl J Med. 2008;359(7):677-87.

7. Hueb W, Lopes N, Gersh BJ et al.; Ten-year follow-up survival of the Medicine, Angioplasty, or Surgery Study (MASS II): a randomized controlled clinical trial of 3 therapeutic strategies for multivessel coronary artery disease. Circulation. 2010;122(10):949-57.

8. Mohr FW, Morice MC, Kappetein AP et al.; Coronary artery bypass graft surgery versus percutaneous coronary intervention in patients with three-vessel disease and left main coronary disease: 5-year follow-up of the randomised, clinical SYNTAX trial. Lancet. 2013 Feb 23;381(9867):629-38.

9. Pijls NHJ, van Schaardenburgh P, Manoharan G, et al. Percutaneous coronary intervention of functionally non-significant stenosis: 5-year follow-up of the DEFER study. J Am Coll Cardiol 2007;49:2105–11

10. Hachamovitch R, Hayes SW, Friedman JD, et al. 2003. Comparison of the short-term survival benefit associated with revascularization compared with medical therapy in patients with no prior coronary artery disease undergoing stress myocardial perfusion single photon emission computed tomography. Circulation 107(23):2900–7.

11. Hachamovitch R, Rozanski A, Shaw LJ, et al. 2011. Impact of ischaemia and scar on the therapeutic benefit derived from myocardial revascularization versus medical therapy among patients undergoing stress-rest myocardial perfusion scintigraphy. Eur. Heart J. 32(8):1012–24

12. Boden WE, Stone PH. 2021. To stent or not to stent? Treating angina after ISCHEMIA—why a conservative approach with optimal medical therapy is the preferred initial management strategy for chronic coronary syndromes: insights from the ISCHEMIA trial. Eur. Heart J. 42(14):1394–40

13. 1. Sousa LLCM, Gowdak LHW. Tratamento invasivo: Bases para a decisão. Insuficiência Coronária Crônca. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo, 2022; 32(4): 460-466.INSS 2595-4644-Versão online.

14. Anthopolos R, Maron DJ, Bangalore S, Reynolds HR, Xu Y, O’Brien SM, Troxel AB, Mavromichalis S, Chang M, Contreras A, Hochman JS on behalf of ISCHEMIA-EXTEND Research Group. American Heart Journal. 2022 Oct 04.

Revascularização no paciente com choque cardiogênico pós-IAM

O choque cardiogênico permanece como uma das piores complicações no cenário da coronariopatia aguda; ocorre em 5-10% (na apresentação ou d…