Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 11 – Situações especiais: endocardite de dispositivos intracardíacos
Layara Fernanda Vicente Pereira Lipari
Situações especiais: endocardite de dispositivos intracardíacos
As infecções relacionadas a dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis (DCEIs) são complicações relacionadas a dispositivos como marcapassos, desfibriladores implantáveis e ressincronizadores. Elas podem ser locais, ou seja, relacionadas à loja do gerador ou infecções mais graves e sistêmicas como é o caso da endocardite infecciosa. Em uma série brasileira de cerca de 500 casos de endocardite ocorridos em um período de 17 anos, cerca de 7% foram relacionados a dispositivos intracardíacos.
As infecções locais são a apresentação mais comum das infecções de DCEI, representando 60% dos casos. São mais comuns logo após o procedimento cirúrgico de implante ou troca do gerador, porém também podem ocorrer mais tardiamente tanto por contaminação local e erosão da pele adjacente ao dispositivo quanto por bacteremia.
O acometimento intravascular exclusivo, ou seja, endocardite sem comprometimento da loja do gerador, ocorre em cerca de 20% dos casos, principalmente por bacteremia relacionada a infecção de outro foco (tromboflebite, osteomielite, pneumonia, cateteres vasculares contaminados ou infecção bacteriana originada da pele, boca, trato gastrointestinal ou urinário).
A etiologia varia com relação ao tipo de infecção – se localizada ou sistêmica – e na série de casos de endocardite já mencionada, a maior parte foi de origem nosocomial, correspondendo a cerca de 50% dos casos, seguida de comunitária em cerca de 30% e finalmente cerca de 20% relacionada à assistência à saúde não nosocomial. O principal patógeno identificado foi o Staphylococcus aureus, seguido por gram-negativo não HACEK e fungos.
As principais complicações foram insuficiência renal aguda, embolização, insuficiência cardíaca aguda e nessa série a mortalidade hospitalar foi de 40% dos casos.
O diagnóstico definitivo de infecção relacionada a dispositivos se fundamenta na presença de coleção purulenta ou exteriorização do dispositivo ao exame físico; do crescimento de microrganismos em hemoculturas e da presença de vegetações na valva tricúspide ou em cabos e eletrodos evidenciada pelo ecocardiograma transesofágico (PET-CT pode ser recomendado quando necessário).
Os fatores de risco para infecções relacionadas a DCEIs incluem reoperações (incluindo implante de dispositivo e troca de gerador), história de infecção de dispositivo prévia, febre antes do implante, idade jovem, tipo de dispositivo (como ressincronizador) e comorbidades como insuficiência renal, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes, insuficiência cardíaca, dermatite e outras.
As medidas com classe de recomendação I para prevenir infecção de dispositivos são: postergar o procedimento em pacientes com infecção vigente, evitar dispositivos invasivos (marcapasso provisório e acesso venoso central) sempre que possível e, quando utilizados, idealmente, devem ser removidos antes da introdução do dispositivo; evitar hematoma de loja (quando possível, suspender antiplaquetários, evitar “ponte” com heparina, dentre outros), fazer a antibioticoprofilaxia pré-operatória adequada. Outras medidas como o uso do envelope antibiótico, antibiótico pós-operatório podem ser indicadas em alguns casos e a drenagem de hematomas deve ser contraindicada.
O tratamento tem como bases a antibioticoterapia, o suporte clínico e a cirurgia de extração do dispositivo quando indicada. A antibioticoterapia deve ser introduzida baseada na hemocultura e só deve ser iniciada empírica e precocemente caso o paciente esteja instável ao momento do diagnóstico. O acometimento do dispositivo demarca maior gravidade e implica na conduta de remoção. O diagnóstico deve ser feito de maneira precisa, pois a retirada desnecessária do dispositivo também implica no risco do procedimento de extração. Para implantes recentes o procedimento de explante costuma ser tecnicamente mais fácil, mas de maneira geral, a extração somente deverá ser realizada quando o paciente estiver estável tanto do ponto de vista hemodinâmico quanto infeccioso, haja vista os riscos associados ao procedimento (principalmente por aderências).
Para pacientes com infecção relacionada ao dispositivo confirmada, seja ela local ou sistêmica, está recomendado remoção completa do sistema, por isso é importante buscar a confirmação da infecção e, em casos de bacteremia sem confirmação adequada, a conduta de remover o dispositivo também deve levar em consideração o patógeno envolvido, reforçando aqui também a importância da coleta das culturas antes da antibioticoterapia.
Nos casos de infecção superficial, o tratamento pode ser feito exclusivamente com antibioticoterapia porém nos casos de infecção de dispositivo, além da indicação de explante o grau de acometimento determina o tempo de antibioticoterapia, sendo de até 4 a 6 semanas nos casos de endocardite com vegetação em valvas ou nos cabos do dispositivo e embolização.
Após a extração é importante sempre questionar e reavaliar a indicação do dispositivo para então definir o melhor momento para o procedimento. O implante do novo dispositivo deve ser realizado somente após remissão completa do processo infeccioso, e deve ser definido em função do quadro clínico, indicando dispositivos temporários (quando essenciais) até que se estabeleça o melhor momento para reimplante do dispositivo, que deve ser implantado preferencialmente em um local diferente, como o sítio contralateral. O procedimento deve ser evitado ou adiado, sempre que possível, até que os sinais e sintomas de infecção local e sistêmica sejam completamente resolvidos e nos pacientes dependentes de marcapasso, é recomendado o uso de um dispositivo temporário no mesmo lado do sistema removido, enquanto aguardam o novo implante definitivo. A diretriz europeia menciona ainda que o cenário ideal para o reimplante envolve culturas negativas por tempo igual ou superior a 72h na ausência de vegetações ou pelo menos 2 semanas quando ainda houver vegetações ao ecocardiograma.
Em resumo, a profilaxia da infecção de dispositivos envolve medidas perioperatórias importantes, incluindo evitar dispositivos invasivos, evitar formação de hematoma e realizar profilaxia antimicrobiana. Para o tratamento das infecções relacionadas a dispositivos, a antibioticoterapia deve ser guiada por cultura e a cirurgia de explante é geralmente recomendada, por isso o diagnóstico precisa ser acurado, evitando indicações imprecisas de procedimentos invasivos e complexos. O reimplante, quando indicado, deve ser realizado após o tratamento e controle do quadro infeccioso e distante do sítio prévio para minimizar o risco de recorrência.
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Como diagnosticar e tratar a endocardite infecciosa relacionada a dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis?
A Dra. Layara Lipari esclarece essa questão no décimo primeiro episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.
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