Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre estenose mitral Episódio 1: etiologia e fisiopatologia
Dra. Talita Mascarenhas
A estenose mitral é caracterizada pelo estreitamento progressivo do orifício mitral, levando à obstrução do fluxo sanguíneo do átrio esquerdo para o ventrículo esquerdo e a sua principal etiologia ainda é a febre reumática, mantendo alta prevalência em países em desenvolvimento, inclusive na população brasileira. No Brasil, a doença reumática é responsável por mais de 90% dos casos de estenose mitral, causando elevada morbimortalidade em pacientes jovens e elevado número de cirurgias cardíacas, permanecendo como um importante problema de saúde pública. Outras causas podemos citar a etiologia degenerativa, através da calcificação do anel mitral, e causas raras como doenças reumatológicas e medicamentosas.
A etiologia reumática acomete principalmente o sexo feminino, representando 2/3 dos pacientes. Os principais marcadores fisiopatológicos são a fusão comissural e o espessamento das bordas das cúspides. Na febre reumática aguda, ocorre inflamação e edema dos folhetos, com pequenos trombos de plaqueta e fibrina, gerando cicatrização e deformação da valva, com obliteração da arquitetura normal do folheto por fibrose, neovascularização e aumento da celularidade do colágeno e do tecido. Os corpos ou nódulos de Aschoff são marcas patológicas da etiologia reumática aguda, sendo observados com mais frequência no tecido miocárdico. A evolução costuma ser lenta, com uma longa fase latente desde o diagnóstico inicial da febre reumática até o desenvolvimento da estenose mitral, porém, em alguns casos, também pode haver progressão rápida, possivelmente relacionado a repetidos surtos da febre reumática, levando a estenose grave e sintomática em adolescentes e adultos jovens.
Atualmente, o número de pacientes portadores de estenose mitral de etiologia degenerativa tem crescido associado ao envelhecimento da população e é ocasionada por calcificação do anel mitral, em inglês Mitral Anullus Calcification – MAC, que pode se estender para a base dos folhetos valvares, gerando restrição para a movimentação das cúspides e para o esvaziamento atrial. É uma doença crônica que atinge predominantemente o segmento posterior do anel fibroso mitral, no qual ocorre aumento da atividade inflamatória e deposição local de cálcio. Esta etiologia é mais comum no sexo feminino e nos idosos, apresentando prevalência estimada de 10% na população idosa. Fatores de risco cardiovasculares, como estenose aórtica, hipertensão arterial, aterosclerose e doença renal crônica, estão relacionados com o surgimento desta patologia. Outras causas raras de estenose mitral incluem doenças reumatológicas (lúpus eritematoso sistêmico ou artrite reumatóide), doenças de depósito (como doença de Fabry), doença de Whipple, terapia com metisergida ou anorexígenos, síndrome carcinóide e alterações anatômicas congênitas da valva mitral, como valva mitral em paraquedas ou hipoplasia da valva mitral.
Em adultos normais, a área valvar mitral varia entre 4 a 6 cm2. A estenose é considerada anatomicamente importante quando a área é ≤1,5. O estreitamento do orifício mitral leva à obstrução do fluxo sanguíneo entre as câmaras esquerdas, gerando sobrecarga de pressão e aumento do gradiente transvalvar mitral. A pressão elevada no átrio esquerdo, por sua vez, eleva as pressões venosas e capilares pulmonares, causando hipertensão arterial pulmonar e aumento das pressões em câmaras direitas. Além disso, o aumento do átrio esquerdo e a estase sanguínea causada pela obstrução do fluxo estão associados a um maior risco de trombo e embolia sistêmica. A dispneia de esforço é um marco da sintomatologia da estenose mitral, sendo comum ser precipitada por taquicardia decorrente do exercício, gravidez, anemia, infecção ou fibrilação atrial, visto que todos aumentam a taxa de fluxo sanguíneo através do orifício mitral, aumentando a pressão no átrio esquerdo, diminuindo o tempo diastólico e reduzindo o débito cardíaco. A fibrilação atrial é frequente nesses pacientes e a sua prevalência é crescente conforme a idade. O ventrículo esquerdo costuma ser relativamente normal e o ecocardiograma é o método preferido para diagnóstico, avaliação da gravidade e consequências hemodinâmicas da estenose mitral.
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Acabamos de lançar mais uma série exclusiva: Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre estenose mitral. No primeiro episódio, a Dra. Talita Mascarenhas conta quais são as etiologias e fisiopatologias da condição.
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