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Angina com coronárias não obstrutivas: Revisando os métodos diagnósticos da doença microvascular e vasoespasmo epicárdico

Dra. Luhanda Monti

Introdução

O termo isquemia com coronárias não obstrutivas (INOCA) / angina com coronárias não obstrutivas (ANOCA), se refere aos pacientes com sintomas de angina/equivalente anginoso e/ou isquemia documentada, na ausência de obstrução coronária significativa (≥ 50%). As principais causas são a doença microvascular (DMV) e o vasoespasmo coronariano, embora possa haver ovelap entre as duas condições e sobreposição com doença arterial coronária (DAC) obstrutiva. A DMV representa a principal causa de INOCA/ANOCA,  é mais comum no sexo feminino, compartilha dos  clássicos fatores risco para aterosclerose e possui correlação com doença inflamatória sistêmica e estresse emocional. Por outro lado, o vasoespasmo epicárdico é mais prevalente em homens de meia idade, especialmente nos asiáticos. O diagnóstico dos subtipos de INOCA/ANOCA impõe desafios, fazendo com que esta entidade seja frequentemente negligenciada e nenhum tratamento personalizado instituído. Como consequência, esses pacientes evoluem com angina de difícil manejo, hospitalizações recorrentes, baixa qualidade de vida, e cineangiocoronariografia (CINE) repetidas. Evidências contundentes demonstram que a  presença de INOCA/ANOCA sela um pior prognóstico, visto o aumento no risco de  morte por todas as causas, infarto agudo do miocárdio (IAM) não fatal e insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada, quando comparados à pacientes sem doença coronária. Este editorial revisará os principais conceitos, diagnóstico e abordagens terapêuticas baseadas no guideline da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) para síndrome coronária crônica (SCC)  de 2024.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da INOCA/ANOCA é complexa e multifatorial. A incompatibilidade entre o suprimento sanguíneo e as demandas de oxigênio do miocárdio que resultam na angina e isquemia vistos na ANOCA/INOCA, tem como mecanismos responsáveis o espasmo epicárdico ou a disfunção da microvascular coronariana.

Doença microvascular: A lesão endotelial e o déficit de óxido nítrico exercem papel central na gênese na da DMV, cuja interação resulta numa reserva de fluxo coronária (RFC) reduzida, ou seja, um fluxo coronário insuficiente frente as demandas, com potencial de causar angina e isquemia De forma específica, os distúrbios que afetam a estrutura e função da microcirculação coronariana são divididos em alterações estruturais e funcionais: 

Alteração estrutural: Ocorre redução da condutância das arteríolas devido ao remodelamento arteriolar e rarefação de capilares, comprometendo o aporte de oxigênio ao miocárdio.

Alteração funcional: Consiste em distúrbios vasomotores dinâmicos e déficit na vasodilatação. A vasodilatação comprometida é resultado da baixa produção ou aumento da degradação de óxido nítrico e outros vasodilatadores dependentes do endotélio, devido à intensa disfunção endoteial associada. Além disso, a presença de fatores de risco cardiovasculares parece induzir a piora da disfunção endotelial, propiciando distúrbios vasomotores transitórios (microespasmos) por baixa sensibilidade aos estímulos vasodilatadores e hipersensibilidade aos estímulos vasoconstritores.

Vasoespasmo coronário: A fisiopatologia é complexa e envolve a hipercontratilidade do músculo liso vascular (mediada pela enzima Rho-quinase), ativação do sistema nervoso autonômico (simpático e parassimpático), disfunção endotelial e polimorfismos genéticos. O resultado é a disfunção vascular com elevada sensibilidade aos agentes vasoconstritores e uma baixa em agentes vasodilatadores  ao nível epicárdico, levando ao espasmo transitório das coronárias epicárdicas. Por essa razão, há uma miríade de fenótipos nos quais o prognóstico tardio e a resposta terapêutica variam substancialmente. 

Manifestação clínica

  O padrão de sintomas difere entre DMV e vasoespasmo epicárdico, mas podem ser mistos no caso de overlap. 

Doença microvascular: A clínica é de angina ou dispneia desencadeada aos esforços. Em alguns casos, os sintomas atípicos (dor em pontada, no dorso) e de duração prolongada, podendo levar à subvalorização. 

Vasoespasmo coronário: Os sintomas costumam ocorrer em repouso, respondendo prontamente a nitratos de curta ação. Parece seguir um padrão circadiano com predomínio à noite (predomínio parassimpático, ação acetilcolina) ou no início da manhã (predomínio simpático, agentes adrenérgicos), e respondem a bloqueadores de canais de cálcio. Podem ser precipitados por  hiperventilação, substâncias à base de epinefrina, cocaína, maconha, sumatriptano e anfetaminas, tabaco, betabloqueadores, temperaturas frias, elevação da pressão arterial e estresse emocional. Alterações eletrocardiográficas isquêmicas podem ocorrer durante os episódios de angina.

Diagnóstico 

O diagnóstico de ANOCA/INOCA se faz com história clínica compatível, pesquisa de fatores de risco, exclusão do componente aterosclerótico obstrutivo e avaliação objetiva da isquemia miocárdica, de forma invasiva ou não invasiva.

Diante da suspeita de INOCA/ANOCA, as diretrizes endossam que se proceda a investigação etiológica com diferenciação dos endótipos (DMV, vasoespasmo epicárdico ou overlap), o que envolve a avaliação da função e integridade coronária (microvascular e epicárdica), prioritariamente de forma invasiva na hemodinâmica, visto a limitação dos testes não invasivos neste cenário. 

Diagnóstico invasivo

    O diagnóstico invasivo consiste na avaliação abrangente da circulação coronária em um único procedimento que combina angiografia com provas de função coronária, usando acetilcolina (Ach) e adenosina a nível epicárdico e microvascular. Os principais parâmetros avaliados para diferenciar os endótipos de INOCA/ANOCA são a reserva de fluxo coronária (RFC) ou índice de resistência microvascular (IMR), geralmente com adenosina, mas existe método não hiperêmico, e o  teste de vasoerreatividade com Ach, tanto para avaliar a integridade endotelial epicárdica e microvascular, quanto para indução do vasoespasmo (com protocolo de dose específica). Além disso, considerando que a RFC se refere à toda a árvore coronária (epicárdica e microvascular), no caso de  lesões moderadas e  testes funcional não invasivo não realizado ou inconclusivo, a análise da reserva de fluxo fracionada (FFR) epicárdica permite identificar de onde vem a RFC reduzida. Por exemplo, num paciente com suspeita de ANOCA, em que foi demonstrado ausência de lesão epicárdica funcionalmente significante por  FFR  > 0,8, uma RFC reduzida ou índice de resistência da microcirculação aumentado, mostra que a RFC reduzida se deve à DMV e não à coronária epicárdica, realizando assim o diagnóstico de DMV, mesmo quando há overlap com outras condições. 

Métodos diagnósticos invasivos da  DMV: 

Avalição da  RFC:  Feito em vasodilatação e hiperemia máximas ( com vasodilatadores derivados de endotélio, como a adenosina) O cálculo RFC pode ser feito por termodiluição  ou velocidade do fluxo ao Doppler,  sendo o primeiro método o mais indicado sendo o ponto de corte para  normalidade ≥ 2,0. 

Avaliação da resistência microvascular:  Pode ser calculada a partir da combinação das aferições de pressão e fluxo, tanto por termodiluição quanto por doppler. O IMR é definido como o produto da pressão coronariana distal em hiperemia máxima pelo tempo médio de hiperemia. Valores de IMR ≥ 25 são representativos de disfunção microvascular. Outro método é o índice de velocidade de resistência miocárdica em hiperemia (HRM) baseado no doppler e é calculado ao dividir a pressão intracoronária pela velocidade de fluxo em hiperemia. Valores de HMR > 1,9 são considerados alterados e correspondem à disfunção microvascular. A partir da RFC, do IMR e do HRM podemos diagnosticar disfunção microvascular.

Critérios invasivos para diagnóstico da DMV: 

  •   FFR > 0,8
    •   RFC por termodiluição < 2,0
  • IMR ≥ 25
  • HMR ≥ 1,9

Métodos diagnósticos invasivos do Vasoespasmo epicárdico: 

O método padrão ouro é o teste provocativo de espasmo epicárdico com Ach intracoronária ou intravenosa (alternativamente ergonovina) durante a CINE com o monitoramento dos sintomas, ECG e documentação angiográfica do espasmo da artéria coronária. De acordo com o consenso do simpósio Coronary Vasomotion Disorders International Study Group (COVADIS), que desenvolveu  padrões internacionais para os critérios diagnósticos de distúrbios cornários vasomotores, o teste positivo para espasmo coronariano epicárdico deve induzir todos os seguintes em resposta ao estímulo provocativo: 

1) reprodução da dor torácica usual 

2)alterações isquêmicas no ECG 

3) >90% de vasoconstrição na angiografia. 

O resultado do teste é considerado ambíguo se o estímulo provocativo não induzir todos os três componentes. 

Critérios invasivos para o diagnóstico de vasoespasmo epicárdico: 

Oclusão transitória total ou subtotal de uma artéria coronária (> 90% de constrição) associado à angina e alterações isquêmias no ECG, tanto de forma espontânea quanto em resposta a um estímulo provocativo (tipicamente com acetilcolina, derivado ergotamínico ou hiperventilação).

Testes não invasivos 

   Embora o diagnóstico seja possível por testes não invasivos, de acordo com o cenário atual no Brasil, a maioria dos testes possui acurácia limitada quando se trata de ANOCA/INOCA, tanto pela forma relativa de avaliar isquemia, quanto pelo fato da maioria não avaliar a RFC e, os que avaliam, não estão disponíveis em grande parte dos centros brasileiros. 

  Os métodos para avaliação de isquemia mais comumente utilizados e disponíveis no Brasil, são a cintilografia de perfusão miocárdica com tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) com estresse, ressonância magnética com estresse e o ecocardiograma com estresse. No entanto, além de não avaliar a RFC, que está reduzida na DMV, são pouco específicos e sensíveis para detectar o padrão de isquemia difusa causada pela DMV, visto que avaliam a isquemia a partir da comparação de diferenças regionais de perfusão ou contratilidade do ventrículo esquerdo. Por essa razão, a ausência de isquemia nesses testes não consegue descartar DMV com precisão. A maioria dos pacientes com angina vasoespástica apresenta teste de estresse negativo para isquemia. O ECG de 12 derivações ou o Holter de 24-48h podem detectar alterações isquêmicas na vigência de dor, podendo ser uma alternativa não invasiva para avaliar o vasoespasmo. O diagnóstico definitivo de angina vasoespástica compreende a apresentação clínica de angina responsiva a nitratos durante episódio espontâneo associada às alterações eletrocardiográficas ou aos critérios angiográficos. No entanto, na ausência da documentação dessas alterações, mas na presença de angina com padrão circadiano de vasoespasmo, responsiva a nitratos durante episódio espontâneo, pode ser considerada como angina vasoespástica possível. 

Alternativas não invasivas mais acuradas, mas pouco disponíveis no Brasil:

   No caso da DMV, uma alternativa mais acurada é a análise da isquemia global por tomografia com emissão de prósiton (PET) marcada com fluorodesoxiglicose (FDG). Além disso, a PET com os marcadores rubídio ou amônia ( não disponíveis no Brasil) permite a análise da própria reserva de fluxo coronária (RFC) que está reduzida na DMV. A cintilografia de perfusão por câmeras de cádmio-zinco-telureto (CZT), é uma ferramenta emergente, disponível em poucos centros do Brasil e que permite análise da isquemia global e da RFC. 

Em suma, estamos evoluindo quanto ao entendimento fisiopatológico, diagnóstico e tratamento, tanto da DMV quanto do vasoespasmo epicárdico. Acreditamos que num futuro próximo, teremos o diagnóstico estará mais disponível. Espero que este artigo te ajude a  buscar de forma mais ativa, alternativas diagnósticas para INOCA/ANOCA. Até o momento os métodos disponíveis no Brasil, ainda que restritos a poucos centros, são: 

  • Avaliação microvascular invasiva na hemodinâmica ( diferentes parâmetros)
  • Avaliação de vasoespasmo epicárdico com Ach -invasiva 
  • Avaliação não invasiva de isquemia global: PET com FDG e Cintilografia por câmara CZT
  • Avaliação não invasiva da isquemia global + RFC por  Cintilografia por câmara CZT
  • Avaliação do vasoespasmo por alterações isquêmicas no Holter 

Referências:

  1. Christiaan Vrints, Felicita Andreotti, Konstantinos C Koskinas, et al. ESC Scientific Document Group , 2024 ESC Guidelines for the management of chronic coronary syndromes: Developed by the task force for the management of chronic coronary syndromes of the European Society of Cardiology (ESC) Endorsed by the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), European Heart Journal, Volume 45, Issue 36, 21 September 2024, Pages 3415–3537.

  2. Travieso A, Jeronimo-Baza A, Faria D, et al. Invasive evaluation of coronary microvascular dysfunction. J Nucl Cardiol. 2022 Oct;29(5):2474-2486. doi: 10.1007/s12350-022-02997-4. Epub 2022 May 26.

  3. John F. Beltrame, Filippo Crea, Juan Carlos Kaski, et al. On Behalf of the Coronary Vasomotion Disorders International Study Group (COVADIS), International standardization of diagnostic criteria for vasospastic angina, European Heart Journal, Volume 38, Issue 33, 01 September 2017, Pages 2565–2568.

  4. Dourado LC, Mendonça CMM, Auge RM, ANGINA ESTÁVEL EM SITUAÇÕES ESPECIAIS: INOCA. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2022;32(4):486-91

Colchicina na Prevenção Secundária da Doença Coronária – Análise Crítica dos Estudos LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9

Dra. Luhanda Monti

Análise Crítica dos Estudos LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9

Colchicina na Prevenção Secundária da Doença Coronária

A inflamação exerce um papel central na patogênese do desenvolvimento, instabilidade e ruptura da placa aterosclerótica na doença arterial coronária (DAC). Apesar dos avanços terapêuticos, pacientes com DAC permanecem sob alto risco de eventos cardiovasculares futuros, sobretudo após sofrerem infarto agudo do miocárdio (IAM), ao que chamamos de risco residual. Diversos estudos reportam que mesmo com os fatores de risco tradicionais controlados e LDL na meta terapêutica, ainda há elevado risco de eventos atribuídos à inflamação crônica residual.  Dessa forma, uma miríade de pesquisas em andamento para preencher esta lacuna. 

Três grandes estudos recentes – LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9 – buscaram elucidar o papel da colchicina neste cenário. LODOCO 2 no cenário de DAC crônica e COLCOT nos agudos, foram positivos em termos prognósticos. Os resultados foram  guiados por redução de IAM e revascularização, sem diferença em mortalidade. Nesse cenário a colchicina foi  aprovada pelo FDA, passando a ser a única droga capaz de reduzir o risco inflamatório residual. Inicialmente com recomendação classe 2b pela diretriz americana de DAC, mais recentemente, recebeu um upgrade para 2a pela última diretriz europeia de DAC crônica. Todavia, para a surpresa de todos, o estudo CLEAR SYNERGY, apresentado do congresso TCT em Washington D.C, não mostrou benefício prognóstico da colchicina iniciada após 72 hora da intervenção coronária percutânea (ICP)  no contexto de pós IAM.  Esses resultados divergentes suscitam questões importantes que merecem uma análise crítica aprofundada e condutas individualizadas na prática. 

Contextualização da teoria inflamatória

O entendimento de que a aterosclerose coronariana é um processo ativo, de incorporação de LDL e cuja inflamação está presente em todas as fases da doença coronária aterosclerótica, data meados do século XIX, sendo corroborado nos anos 1980, após a descoberta de macrófagos e linfócitos T. O ensaio clínico randomizado Canacinumabe Antiinflammatory Thrombosis Outcomes Study (CANTOS), o primeiro a estabelecer a prova de conceito da teoria inflamatória,  demonstrou que em pacientes com histórico de infarto e proteína C reativa  (PCR)  ≥2, a inibição da interleucina-1β ( citocina chave na sinalização de IL-6, um dos fatores mais importantes do complexo imune-inflamatório, que determina o crescimento da placa de ateroma e sua ruptura) pelo anticorpo monoclonal injetável canacinumabe, reduziu o risco de eventos cardiovasculares (CV) em 15% vs.  placebo, sem impactar os níveis de colesterol, embora com a ressalva de aumento ligeiro na incidência de infecções fatais. Em contrapartida, o metotrexato não afetou os resultados CV ou os marcadores inflamatórios no Cardiovascular Inflammation Reduction Trial (CIRT). Desde então, a busca por terapias anti-inflamatórias eficazes na prevenção secundária e redução do risco residual inflamatório tem sido um campo de intensa investigação nas últimas décadas. 

A colchicina emergiu como um candidato promissor, visto que é uma droga barata, com efeitos colaterais não fatais, geralmente bem tolerada e com um potente efeito anti-inflamatório. A droga exerce sua ação anti inflamatória por diversas vias, como a inibição da polimerização da tubulina e  geração de microtúbulos, reduzindo a ativação e migração de neutrófilos aos locais de inflamação. Além disso, vários estudos reportam sua ação em reduzir a ativação do inflamassoma NLRP3, uma plataforma multiproteica que ativa a caspase-1, responsável pela maturação de citocinas pró-inflamatórias como a interleucina-1β (IL-1β), IL-18 e IL-6. Estudos sugerem que a diminuição de IL-1β e  IL-6 (altamente aterogênica), além da inibição de moléculas de adesão, reduz a resposta inflamatória crônica que contribui para a progressão da aterosclerose e a instabilidade das placas coronárias. No sangue, é possível dosar a PCR ultrassensível, que tem relação linear com o aumento do risco CV.

LODOCO2 e COLCOT: Promessa de um Novo Paradigma

Os estudos LODOCO2 e COLCOT publicados em 2020 e 2019, respectivamente,  trouxeram resultados positivos. O LODOCO2, focado em pacientes com DAC crônica estável, demonstrou redução de 31% no risco relativo de eventos CV. De forma similar, o COLCOT, realizado em pacientes pós-infarto recente, mostrou uma redução de 23% no risco de eventos. A redução dos desfechos foi impulsionada  por menores taxas de IAM e revascularização adicional sem haver, no entanto, redução de mortalidade. Esses resultados corroboraram a hipótese inflamatória da aterosclerose e sugeriram um novo paradigma no tratamento da DAC. Em agosto de 2024 a colchicina recebeu um upgrade de recomendação para 2a visando melhora de prognóstico na DAC crônica, pela diretriz europeia. 

CLEAR SYNERGY OASIS-9: Um Contraponto Inesperado

Contrastando com os achados promissores do COLCOT e LODOCO2, o estudo CLEAR SYNERGY OASIS-9 apresentado em novembro de 2024 no congresso do TCT em Washington, não mostrou benefício significativo da colchicina em pacientes pós IAM. O resultado inesperado repartiu opiniões na comunidade cardiológica, mas merece uma reflexão cuidadosa sobre as diferenças metodológicas e contextuais entre as evidências existentes e o impacto na prática. 

Desenho do Estudo: Trata-se de um ECR, multicêntrico, duplo-cego, placebo controlado, cujas análises foram conduzidas com o princípio de intention-to-treat. 

Estudo fatorial 2×2, no qual 7060 pacientes pós IAM foram alocados randomicamente, dentro de 72 horas da ICP índice para receber  colchicina 0,5 mg diariamente versus placebo e espironolactona 25 mg diariamente versus placebo. Aproximadamente 95% dos pacientes apresentaram  IAM com supradesnível de ST (IAM CSST). A mediana de seguimento foi de 3,5 anos. 

Vamos às análises: O seu desenho fatorial 2×2 incluindo a espironolactona introduz fator de confusão e complexidades adicionais. A potencial interação entre colchicina e espironolactona é desconhecida e pode ter mascarado os efeitos individuais da colchicina. O uso da espironolactona no IAM de pacientes com FE ≤40%, possui benefícios cardiovasculares bem estabelecidos, como visto no estudo REMINDER e ALBATROSS. Os três estudos foram robustos em tamanho amostral e tempo de seguimento, embora o CLEAR SYNERGY tenha aumentado sua robustez ao incluir mais pacientes 7.062 vs. LODOCO2 5.522 e COLCOT 4.745.

População e Timing do Tratamento: O LODOCO2 focou na DAC crônica e estável, ao passo que o COLCOT e o CLEAR SYNERGY iniciaram a colchicina em pacientes pós-IAM ainda na fase aguda. Sabemos que DAC crônica e aguda são duas entidades distintas que diferem sobremaneira com relação ao risco de MACE. Seguramente a população do CLEAR era de maior gravidade, até 95% dos pacientes tinham IAM com IAM CSST e os pacientes com IAM sem supra de ST, precisavam atender pelo menos um dos seguintes critérios para serem incluídos: FE ≤45%, diabetes, doença multiarterial, IM prévio ou idade >60 anos. Além disso, mesmo entre COLCOT e CLEAR SYNERGY, que focaram nos casos agudos, houveram diferenças. O CLEAR iniciou o tratamento mais precocemente (média 72 horas após a ICP) , ao passo que o COLCOT teve uma média de 13,5 dias pós evento. Esta diferença pode ter sido crucial, considerando a dinâmica temporal da inflamação no pós-IAM. Embora no estudo CLEAR o PCR tenha tido queda significativa no grupo colchicina, seus níveis ainda se mantiveram altos quando comparado aos outros estudos. 

Contexto Pandemia COVID-19: Único entre os três, o CLEAR SYNERGY foi conduzido durante a pandemia de COVID-19. Este fator não pode ser subestimado, dada a profunda influência da pandemia nos cuidados de saúde, perfis de risco dos pacientes e condução dos estudos. 

RESULTADOS CLEAR SYNERGY

O desfecho primário de eventos CV adversos maiores, composto por morte CV, IAM, acidente vascular cerebral ou revascularização induzida por isquemia, para colchicina vs. placebo em 5 anos, foi: 9,1% vs. 9,3%, razão de risco (HR) 0,99 (intervalo de confiança [IC] de 95% 0,85-1,16), p = 0,93.

Resultados secundários para colchicina vs. placebo em 5 anos:

  • Morte CV: 3,3% vs. 3,2%, HR 1,03 (IC 95% 0,80-1,34)
  • Morte por todas as causas: 4,6% vs. 5,1%, HR 0,90 (IC 95% 0,73-1,12)
  • IAM: 2,9% vs. 3,1%, HR 0,88 (IC 95% 0,66-1,17)
  • Revascularização guiada por isquemia: 4,6% vs. 4,7%, HR 1,01 (IC 95% 0,81-1,17)
  • Níveis de PCR  em 3 meses: 3,0 vs. 4,3 mg/dL, p < 0,001

Resultados de segurança para colchicina vs. placebo:

  • Diarreia: 10,2% vs. 6,6%, p < 0,001
  • Infecção grave: 2,5% vs. 2,9%, p = 0,85

Implicações para a Prática Clínica

  1. Individualização do Tratamento: A colchicina pode ainda ter um papel importante em subgrupos específicos de pacientes, particularmente aqueles com DAC crônica estável ou em fases mais tardias pós-infarto. Em suma, quando o processo inflamatório já não é tão exuberante como em pacientes com IAM na fase precoce. 
  2. Consideração do Perfil de Risco: Pacientes com DAC crônica e evidência de inflamação residual (PCR ≥2) podem ser os candidatos mais apropriados para terapia com colchicina.
  3. Monitoramento Cuidadoso: Ao prescrever colchicina, devemos estar atentos aos efeitos colaterais (gastrointestinais) e interações medicamentosas, dosando risco vs. benefício.
  4. Necessidade de Mais Pesquisas: Estudos adicionais são necessários para esclarecer o papel da colchicina em diferentes subgrupos de pacientes e em diferentes cenários da doença coronária.

Opinião pessoal:

Sob a luz das evidências disponíveis, acredito que a colchicina se designe à pacientes com DAC crônica, com inflamação crônica e de baixo-moderado grau, já sabendo que o objetivo não é reduzir óbito, visto a ausência desse benefício em todos os estudos com a droga, mas de certa forma, melhorar o prognóstico e até qualidade de vida, ao reduzir IAM e revascularização adicional. O benefício parece modesto, mas não o bastante para abandonarmos a única estratégia acessível e custo-eficaz, capaz atuar na redução do risco residual inflamatório em pacientes selecionados com DAC crônica. Por outro lado, não entraria com a droga para pacientes agudos. 

Conclusão

No estudo CLEAR SYNERGY, a colchicina iniciada no pós IAM precoce não reduziu o desfecho composto primário de morte CV, IAM, acidente vascular cerebral, como visto no COLCOT e LODOCO2. 

Os estudos LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9 representam marcos importantes na investigação do papel da colchicina na prevenção secundária. Suas divergências não diminuem a importância de cada um, mas destacam a complexidade da doença coronária e a necessidade de uma abordagem nuançada na interpretação de evidências clínicas. Por ora, em pacientes com DAC crônica, a colchicina permanece como a única medicação para redução do risco inflamatório residual, recomendação classe 2a da diretriz europeia de DAC crônica 2024. Em pacientes agudos, o benefício parece incerto ou muito modesto. Diante de dois estudos divergentes, aguardamos novas evidências. 

Referências: 

Presented by Dr. Sanjit S. Jolly at the Transcatheter Cardiovascular Therapeutics meeting (TCT 2024), Washington, DC, October 29, 2024.

Nidorf SM, Fiolet ATL, Mosterd A, et al. LoDoCo2 Trial Investigators. Colchicine in Patients with Chronic Coronary Disease. N Engl J Med. 2020 Nov 5;383(19):1838-1847.

Hansson GK. Inflammation, atherosclerosis, and coronary artery disease. N Engl J Med 2005;352:1685-95.

Ridker PM, Everett BM, Thuren T, et al. Antiinflammatory therapy with canakinumab for atherosclerotic disease. N Engl J Med 2017;377:1119-31.

Ridker PM, Everett BM, Pradhan A, et al. Low-dose methotrexate for the prevention of atherosclerotic events. N Engl J Med 2019;380:752-62.

Tardif JC, Roubille F, et al. Low-Dose Colchicine after Myocardial Infarction N Engl J Med 2019; NEJMoa1912388