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Colchicina na Prevenção Secundária da Doença Coronária – Análise Crítica dos Estudos LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9

Dra. Luhanda Monti

A inflamação exerce um papel central na patogênese do desenvolvimento, instabilidade e ruptura da placa aterosclerótica na doença arterial coronária (DAC). Apesar dos avanços terapêuticos, pacientes com DAC permanecem sob alto risco de eventos cardiovasculares futuros, sobretudo após sofrerem infarto agudo do miocárdio (IAM), ao que chamamos de risco residual. Diversos estudos reportam que mesmo com os fatores de risco tradicionais controlados e LDL na meta terapêutica, ainda há elevado risco de eventos atribuídos à inflamação crônica residual.  Dessa forma, uma miríade de pesquisas em andamento para preencher esta lacuna. 

Três grandes estudos recentes – LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9 – buscaram elucidar o papel da colchicina neste cenário. LODOCO 2 no cenário de DAC crônica e COLCOT nos agudos, foram positivos em termos prognósticos. Os resultados foram  guiados por redução de IAM e revascularização, sem diferença em mortalidade. Nesse cenário a colchicina foi  aprovada pelo FDA, passando a ser a única droga capaz de reduzir o risco inflamatório residual. Inicialmente com recomendação classe 2b pela diretriz americana de DAC, mais recentemente, recebeu um upgrade para 2a pela última diretriz europeia de DAC crônica. Todavia, para a surpresa de todos, o estudo CLEAR SYNERGY, apresentado do congresso TCT em Washington D.C, não mostrou benefício prognóstico da colchicina iniciada após 72 hora da intervenção coronária percutânea (ICP)  no contexto de pós IAM.  Esses resultados divergentes suscitam questões importantes que merecem uma análise crítica aprofundada e condutas individualizadas na prática. 

Contextualização da teoria inflamatória

O entendimento de que a aterosclerose coronariana é um processo ativo, de incorporação de LDL e cuja inflamação está presente em todas as fases da doença coronária aterosclerótica, data meados do século XIX, sendo corroborado nos anos 1980, após a descoberta de macrófagos e linfócitos T. O ensaio clínico randomizado Canacinumabe Antiinflammatory Thrombosis Outcomes Study (CANTOS), o primeiro a estabelecer a prova de conceito da teoria inflamatória,  demonstrou que em pacientes com histórico de infarto e proteína C reativa  (PCR)  ≥2, a inibição da interleucina-1β ( citocina chave na sinalização de IL-6, um dos fatores mais importantes do complexo imune-inflamatório, que determina o crescimento da placa de ateroma e sua ruptura) pelo anticorpo monoclonal injetável canacinumabe, reduziu o risco de eventos cardiovasculares (CV) em 15% vs.  placebo, sem impactar os níveis de colesterol, embora com a ressalva de aumento ligeiro na incidência de infecções fatais. Em contrapartida, o metotrexato não afetou os resultados CV ou os marcadores inflamatórios no Cardiovascular Inflammation Reduction Trial (CIRT). Desde então, a busca por terapias anti-inflamatórias eficazes na prevenção secundária e redução do risco residual inflamatório tem sido um campo de intensa investigação nas últimas décadas. 

A colchicina emergiu como um candidato promissor, visto que é uma droga barata, com efeitos colaterais não fatais, geralmente bem tolerada e com um potente efeito anti-inflamatório. A droga exerce sua ação anti inflamatória por diversas vias, como a inibição da polimerização da tubulina e  geração de microtúbulos, reduzindo a ativação e migração de neutrófilos aos locais de inflamação. Além disso, vários estudos reportam sua ação em reduzir a ativação do inflamassoma NLRP3, uma plataforma multiproteica que ativa a caspase-1, responsável pela maturação de citocinas pró-inflamatórias como a interleucina-1β (IL-1β), IL-18 e IL-6. Estudos sugerem que a diminuição de IL-1β e  IL-6 (altamente aterogênica), além da inibição de moléculas de adesão, reduz a resposta inflamatória crônica que contribui para a progressão da aterosclerose e a instabilidade das placas coronárias. No sangue, é possível dosar a PCR ultrassensível, que tem relação linear com o aumento do risco CV.

LODOCO2 e COLCOT: Promessa de um Novo Paradigma

Os estudos LODOCO2 e COLCOT publicados em 2020 e 2019, respectivamente,  trouxeram resultados positivos. O LODOCO2, focado em pacientes com DAC crônica estável, demonstrou redução de 31% no risco relativo de eventos CV. De forma similar, o COLCOT, realizado em pacientes pós-infarto recente, mostrou uma redução de 23% no risco de eventos. A redução dos desfechos foi impulsionada  por menores taxas de IAM e revascularização adicional sem haver, no entanto, redução de mortalidade. Esses resultados corroboraram a hipótese inflamatória da aterosclerose e sugeriram um novo paradigma no tratamento da DAC. Em agosto de 2024 a colchicina recebeu um upgrade de recomendação para 2a visando melhora de prognóstico na DAC crônica, pela diretriz europeia. 

CLEAR SYNERGY OASIS-9: Um Contraponto Inesperado

Contrastando com os achados promissores do COLCOT e LODOCO2, o estudo CLEAR SYNERGY OASIS-9 apresentado em novembro de 2024 no congresso do TCT em Washington, não mostrou benefício significativo da colchicina em pacientes pós IAM. O resultado inesperado repartiu opiniões na comunidade cardiológica, mas merece uma reflexão cuidadosa sobre as diferenças metodológicas e contextuais entre as evidências existentes e o impacto na prática. 

Desenho do Estudo: Trata-se de um ECR, multicêntrico, duplo-cego, placebo controlado, cujas análises foram conduzidas com o princípio de intention-to-treat. 

Estudo fatorial 2×2, no qual 7060 pacientes pós IAM foram alocados randomicamente, dentro de 72 horas da ICP índice para receber  colchicina 0,5 mg diariamente versus placebo e espironolactona 25 mg diariamente versus placebo. Aproximadamente 95% dos pacientes apresentaram  IAM com supradesnível de ST (IAM CSST). A mediana de seguimento foi de 3,5 anos. 

Vamos às análises: O seu desenho fatorial 2×2 incluindo a espironolactona introduz fator de confusão e complexidades adicionais. A potencial interação entre colchicina e espironolactona é desconhecida e pode ter mascarado os efeitos individuais da colchicina. O uso da espironolactona no IAM de pacientes com FE ≤40%, possui benefícios cardiovasculares bem estabelecidos, como visto no estudo REMINDER e ALBATROSS. Os três estudos foram robustos em tamanho amostral e tempo de seguimento, embora o CLEAR SYNERGY tenha aumentado sua robustez ao incluir mais pacientes 7.062 vs. LODOCO2 5.522 e COLCOT 4.745.

População e Timing do Tratamento: O LODOCO2 focou na DAC crônica e estável, ao passo que o COLCOT e o CLEAR SYNERGY iniciaram a colchicina em pacientes pós-IAM ainda na fase aguda. Sabemos que DAC crônica e aguda são duas entidades distintas que diferem sobremaneira com relação ao risco de MACE. Seguramente a população do CLEAR era de maior gravidade, até 95% dos pacientes tinham IAM com IAM CSST e os pacientes com IAM sem supra de ST, precisavam atender pelo menos um dos seguintes critérios para serem incluídos: FE ≤45%, diabetes, doença multiarterial, IM prévio ou idade >60 anos. Além disso, mesmo entre COLCOT e CLEAR SYNERGY, que focaram nos casos agudos, houveram diferenças. O CLEAR iniciou o tratamento mais precocemente (média 72 horas após a ICP) , ao passo que o COLCOT teve uma média de 13,5 dias pós evento. Esta diferença pode ter sido crucial, considerando a dinâmica temporal da inflamação no pós-IAM. Embora no estudo CLEAR o PCR tenha tido queda significativa no grupo colchicina, seus níveis ainda se mantiveram altos quando comparado aos outros estudos. 

Contexto Pandemia COVID-19: Único entre os três, o CLEAR SYNERGY foi conduzido durante a pandemia de COVID-19. Este fator não pode ser subestimado, dada a profunda influência da pandemia nos cuidados de saúde, perfis de risco dos pacientes e condução dos estudos. 

RESULTADOS CLEAR SYNERGY

O desfecho primário de eventos CV adversos maiores, composto por morte CV, IAM, acidente vascular cerebral ou revascularização induzida por isquemia, para colchicina vs. placebo em 5 anos, foi: 9,1% vs. 9,3%, razão de risco (HR) 0,99 (intervalo de confiança [IC] de 95% 0,85-1,16), p = 0,93.

Resultados secundários para colchicina vs. placebo em 5 anos:

  • Morte CV: 3,3% vs. 3,2%, HR 1,03 (IC 95% 0,80-1,34)
  • Morte por todas as causas: 4,6% vs. 5,1%, HR 0,90 (IC 95% 0,73-1,12)
  • IAM: 2,9% vs. 3,1%, HR 0,88 (IC 95% 0,66-1,17)
  • Revascularização guiada por isquemia: 4,6% vs. 4,7%, HR 1,01 (IC 95% 0,81-1,17)
  • Níveis de PCR  em 3 meses: 3,0 vs. 4,3 mg/dL, p < 0,001

Resultados de segurança para colchicina vs. placebo:

  • Diarreia: 10,2% vs. 6,6%, p < 0,001
  • Infecção grave: 2,5% vs. 2,9%, p = 0,85

Implicações para a Prática Clínica

  1. Individualização do Tratamento: A colchicina pode ainda ter um papel importante em subgrupos específicos de pacientes, particularmente aqueles com DAC crônica estável ou em fases mais tardias pós-infarto. Em suma, quando o processo inflamatório já não é tão exuberante como em pacientes com IAM na fase precoce. 
  2. Consideração do Perfil de Risco: Pacientes com DAC crônica e evidência de inflamação residual (PCR ≥2) podem ser os candidatos mais apropriados para terapia com colchicina.
  3. Monitoramento Cuidadoso: Ao prescrever colchicina, devemos estar atentos aos efeitos colaterais (gastrointestinais) e interações medicamentosas, dosando risco vs. benefício.
  4. Necessidade de Mais Pesquisas: Estudos adicionais são necessários para esclarecer o papel da colchicina em diferentes subgrupos de pacientes e em diferentes cenários da doença coronária.

Opinião pessoal:

Sob a luz das evidências disponíveis, acredito que a colchicina se designe à pacientes com DAC crônica, com inflamação crônica e de baixo-moderado grau, já sabendo que o objetivo não é reduzir óbito, visto a ausência desse benefício em todos os estudos com a droga, mas de certa forma, melhorar o prognóstico e até qualidade de vida, ao reduzir IAM e revascularização adicional. O benefício parece modesto, mas não o bastante para abandonarmos a única estratégia acessível e custo-eficaz, capaz atuar na redução do risco residual inflamatório em pacientes selecionados com DAC crônica. Por outro lado, não entraria com a droga para pacientes agudos. 

Conclusão

No estudo CLEAR SYNERGY, a colchicina iniciada no pós IAM precoce não reduziu o desfecho composto primário de morte CV, IAM, acidente vascular cerebral, como visto no COLCOT e LODOCO2. 

Os estudos LODOCO2, COLCOT e CLEAR SYNERGY OASIS-9 representam marcos importantes na investigação do papel da colchicina na prevenção secundária. Suas divergências não diminuem a importância de cada um, mas destacam a complexidade da doença coronária e a necessidade de uma abordagem nuançada na interpretação de evidências clínicas. Por ora, em pacientes com DAC crônica, a colchicina permanece como a única medicação para redução do risco inflamatório residual, recomendação classe 2a da diretriz europeia de DAC crônica 2024. Em pacientes agudos, o benefício parece incerto ou muito modesto. Diante de dois estudos divergentes, aguardamos novas evidências. 

Referências: 

Presented by Dr. Sanjit S. Jolly at the Transcatheter Cardiovascular Therapeutics meeting (TCT 2024), Washington, DC, October 29, 2024.

Nidorf SM, Fiolet ATL, Mosterd A, et al. LoDoCo2 Trial Investigators. Colchicine in Patients with Chronic Coronary Disease. N Engl J Med. 2020 Nov 5;383(19):1838-1847.

Hansson GK. Inflammation, atherosclerosis, and coronary artery disease. N Engl J Med 2005;352:1685-95.

Ridker PM, Everett BM, Thuren T, et al. Antiinflammatory therapy with canakinumab for atherosclerotic disease. N Engl J Med 2017;377:1119-31.

Ridker PM, Everett BM, Pradhan A, et al. Low-dose methotrexate for the prevention of atherosclerotic events. N Engl J Med 2019;380:752-62.

Tardif JC, Roubille F, et al. Low-Dose Colchicine after Myocardial Infarction N Engl J Med 2019; NEJMoa1912388

Lesão de Tronco de coronária esquerda: ICP vs. CRM Análise crítica dos principais estudos

Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa

Mantenha seu coração forte e saudável com a revascularização. Descubra como esse procedimento pode melhorar a circulação e prevenir complicações.

 

A presença de lesão em TCE ≥ 50% desprotegido, constitui uma das principais indicações prognósticas de revascularização do miocárdio, dada extensa área de miocárdio em risco e alto risco de morte súbita. Portanto, recebe recomendação classe 1 pelas principais diretrizes mundiais. 

Por muito tempo, a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM), era o único método de revascularização possível. No entanto, com o avanço das novas plataformas de stents e o uso de imagem intravascular, como o ultrassom intravascular (IVUS), a intervenção coronária percutânea (ICP) contemporânea passou a fazer parte do arsenal terapêutico da lesão de TCE. 

A primeira evidência de que a revascularização poderia aumentar a sobrevida desses pacientes veio de uma sub análise dos 91 pacientes (dos 686 total do estudo), do ECR The Veterans Administration Coronary Artery Bypass Surgery Cooperative, na década de 1970, a qual evidenciou maior sobrevida nos pacientes submetidos à CRM vs. tratamento clínico (TC) da época.  A análise do registro CASS clínico (dos pacientes que não entraram no estudo randomizado) mostrou que a presença de estenose ≥ 50% em TCE (excluíram TCE ≥ 70%) é um forte preditor de mortalidade em pacientes que ficam em TC exclusivo. Posteriormente, uma metanálise de subestudos nessa população, corroborou o benefício da CRM. Desde então, nunca mais ninguém se atreveu a randomizar esses pacientes para TC, muito embora, nessa época, a CRM ainda se valesse de enxertos venosos e o TC de betabloqueador e nitrato, estando ambos aquém do ideal. Dessa forma, com o advento dos enxertos arteriais e stents farmacológicos de última geração, a comparação entre intervenção coronária percutânea (ICP) e CRM se fez necessária. 

Nos anos 2000, a análise dos  705 pacientes com lesão de TCE do estudo SYNTAX, um ECR de não inferioridade, que randomizou pacientes com DAC triarterial ou lesão de TCE ≥ 50% para ICP vs. CRM, mostrou que na avaliação pro tercis de Syntax dos pacientes com lesão de TCE, quando o Syntax Score foi baixo (0-22) ou intermediário (23-32), a ICP foi não inferior à CRM aos 5 anos de seguimento para o desfecho composto de (morte por todas as causas, infarto, acidente vascular encefálico (AVE) ou revascularização adicional (MACCE). Contudo, no tercil de maior complexidade anatômica (Syntax Score >32), a ICP cursou com maiores taxas de MACCE, porém sem diferença em mortalidade. A justificativa se insere no fato de que o TCE grave com Syntax Score > 32 denota acometimento multiarterial concomitante, condição na qual a CRM já se mostrou soberana. Outrossim, a natureza das duas intervenções é distinta, a CRM possui maior capacidade em alcançar a revascularização completa por “by passar” todo o território pós estenose, protegendo o indivíduo de eventos isquêmicos futuros causados por lesões que venham a se desenvolver e instabilizar, ao passo que a ICP trata apenas lesões focais. De fato, o estudo mostrou maiores taxas de revascularização completa (63,2 %) com a CRM, do que com a ICP (56,7%) p=0,005. O estudo de sobrevida de 10 anos não mostrou diferença em mortalidade. Em 2011, o estudo PRECOMBAT (Premier of Randomized Comparison of Bypass Surgery versus Angioplasty Using Sirolimus-Eluting Stent in Patients with Left Main Coronary Disease), mostrou que a ICP com sirolimus foi não inferior à CRM em termos de MACCE.

Já na seara dos estudos contemporâneos designados à comparar ICP vs. CRM na lesão grave em TCE, foram desenhados o NOBLE (Nordic-Baltic-British Left Main Revascularization) e o EXCEL (The randomized clinical trials of left main coronary artery revascularization). 

O estudo NOBLE foi um ECR que avaliou a não inferioridade da ICP com SF revestido por biolimus com polímero biodegradável vs. CRM, apenas em pacientes com acometimento de TCE≥ 50% ou com FFR <0,8 e no máximo 3 lesões adicionais não complexas, cuja mediana do Syntax Score foi de 22,5. No primeiro ano de seguimento as taxas de MACCE foram semelhantes entre os grupos, ao passo que no seguimento de 5 anos, a ICP cursou com maiores taxas de MACCE, sendo esta diferença impulsionada por IAM espontâneo e revascularização adicional, sem haver, no entanto, diferenças significativas em mortalidade geral e cardiovascular ou AVC.

O polêmico estudo EXCEL, também de não-inferioridade, se propôs a avaliar pacientes com lesão de TCE de baixa ou moderada complexidade (Syntax Score < 33) para ICP com SF revestido de everolimus com polímero durável Xience vs. CRM. Diferentemente do NOBLE, o EXCEL conseguiu demonstrar a não inferioridade da ICP frente à CRM para o desfecho primário composto de morte por todas as causas, IAM (embora tenha incluído IAM peri-procedimento e espontâneo) ou AVC (ICP 22% vs. CRM 19%). Os autores concluíram que as duas intervenções são equivalentes. No entanto, algumas observações foram feitas por parte da comunidade médica na época da publicação, e que de fato devem ser levadas em consideração na tomada de decisão.  A primeira foi o aumento significativo de morte geral do desfecho secundário (com todas as considerações de ser desfecho secundário) justificada pelos autores como sendo ao acaso e sem diferença para morte de causa cardíaca. A inclusão de AVE nos desfechos, claramente desfavorece a CRM, e, de fato, houve mais AVE  0-30 dias, embora a maioria fosse acidente vascular transitório (AIT) e sem diferença no longo prazo. A inclusão de IAM peri-procedimento foi inadequada, primeiro porque não tem o mesmo impacto que IAM espontâneo, depois que a definição de IAM, nesse estudo, não seguiu a classificação universal, considerando apenas o valor enzimático como critério. Além disso, foi utilizado o mesmo ponto de corte de CKMB para IAM peri-procedimento entre ICP e CRM, o que claramente desfavorece a CRM, na qual a injúria é sabidamente maior. Outro ponto é que, em estudos de não inferioridade, admite-se uma margem na qual o procedimento pode ser inferior ao padrão e mesmo assim é considerado não inferior, o que não é o mesmo que equivalentes. Além disso, a análise intention-to-treat em estudos de não-inferioridade pode favorecer a hipótese do autor, funcionado como viés. 

Apesar dessas observações, o EXCEL foi um estudo bem desenhado e que, juntamente com o NOBLE, fomentou evidências robustas acerca da ICP vs. CRM em pacientes com lesão grave em TCE. 

Mas como fica na prática: ICP vs. CRM? 

A última diretriz de revascularização do miocárdio da AHA/ACC 2021 mantém a CRM como tratamento padrão na lesão grave em TCE, com recomendação classe 1 NE. A ICP ficou como opção com classe 2a, independente do valor do Syntax, o que configurou um upgrade quando comparado a diretriz europeia, na qual a ICP com syntax ≥ 33 era classe III, pois ainda não tínhamos os resultados do EXCEL e NOBLE.    

De fato, a recomendação 2a quando baixa ou intermediária complexidade anatômica parece bem apropriada, principalmente em pacientes cujo risco cirúrgico é alto ou quando há fragilidade. Contudo, a grande questão recai no  gerenciamento dos pacientes com lesão de TCE≥ 50% multiarteriais e Syntax Score > 33, já que esse foi o subgrupo que pior se saiu com a ICP do estudo SYNTAX, e, a esse respeito, nem o EXCEL e nem o NOBLE, possuem robustez suficiente, visto que nos dois estudos o Syntax score era < 33. Diferenciar lesão de TCE isolada de TCE + 2 ou 3 vasos é de suma importância para uma decisão assertiva, que deve ser individualizada e considerar outras características para a tomada de decisão, como fragilidade, factibilidade técnica e risco cirúrgico.

Considerando o EXCEL e o NOBLE, as taxas de eventos foram extremamente baixas quando comparadas aos mais antigos, provavelmente devido à utilização de novas tecnologias, como IVUS e stents de última geração. Deve-se considerar que esta não é a realidade da maioria dos centros brasileiros, logo ao pensar em indicar ICP na lesão de TCE, certifique se o hospital possui o arsenal tecnológico utilizado por esses estudos, bem como hemodinamicistas experientes. Nesse cenário, a tomada de decisão em conjunto com um Heart Team, torna-se de suma importância.

Referências: 

  1. Veterans Administration Coronary Artery Bypass Surgery Cooperative Study Group. Eleven-year survival in the Veterans Administration randomized trial of coronary bypass surgery for stable angina. N Engl J Med. 1984 Nov 22;311(21):1333-9.

 

  1. Myers WO, Davis K, Foster ED, Maynard C, Kaiser GC. Surgical survival in the Coronary Artery Surgery Study (CASS) registry. Ann Thorac Surg. 1985 Sep;40(3):245-60. 
  2. Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, et al.; ESC Scientific Document Group. 2018 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan 7;40(2):87-165. 
  3. Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S et al.; 2021 ACC/AHA/SCAI Guideline for Coronary Artery Revascularization: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2022 Jan 18;145(3): e18-e114. 
  4. Mohr FW, Morice MC, Kappetein AP et al.; Coronary artery bypass graft surgery versus percutaneous coronary intervention in patients with three-vessel disease and left main coronary disease: 5-year follow-up of the randomised, clinical SYNTAX trial. Lancet. 2013 Feb 23;381(9867):629-38. 
  5. Park DW, Ahn JM, Park H etal.; Ten-Year Outcomes After Drug-Eluting Stents Versus Coronary Artery Bypass Grafting for Left Main Coronary Disease: Extended Follow-Up of the PRECOMBAT Trial. Circulation. 2020 May 5;141(18):1437-1446. 
  6. Holm NR, Mäkikallio T, Lindsay MM et al.; Percutaneous coronary angioplasty versus coronary artery bypass grafting in the treatment of unprotected left main stenosis: updated 5-year outcomes from the randomised, non-inferiority NOBLE trial. Lancet. 2020 Jan 18;395(10219):191-199. 
  7. Azzalini L, Stone GW. Percutaneous Coronary Intervention or Surgery for Unprotected Left Main Disease: EXCEL Trial at 5 Years. Interv Cardiol Clin. 2020 Oct;9(4):419-432.

 

FIRE Trial: e nos idosos, devemos tratar somente o vaso culpado ou revascularização completa após coronariopatia aguda?

Luciano Moreira Baracioli

Descubra os benefícios da revascularização para pacientes com infarto agudo do miocárdio. Conheça o estudo COMPLETE e seus resultados.

Evidências científicas surgiram avaliando se o tratamento completo (revascularização do vaso culpado e de obstruções residuais) seria superior ao tratamento isolado do vaso culpado e qual seria o melhor momento para realizá-lo, nos pacientes após infarto agudo do miocárdio. O estudo mais recente sobre o assunto é o COMPLETE (1), que randomizou 4041 pacientes, com infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST (IAMcomESST) tratados por intervenção coronária percutânea (ICP) primária, para uma abordagem apenas do vaso culpado versus revascularização completa. O grupo de revascularização completa, que realizava a ICP de forma estadiada (durante internação – tempo médio de 1 dia, ou após a alta hospitalar – tempo médio de 23 dias – com no máximo 45 dias da randomização), demonstrou redução significativa do desfecho primário de morte cardiovascular ou infarto do miocárdio (7,8% vs 10,5%, HR=0,74; IC 95% = 0,60-0,91; p = 0,004). Porém salienta-se que a idade média desta população foi de 62 anos. Uma meta-análise (10 ensaios clínicos randomizados, totalizando 7.030 pacientes) demonstrou redução de óbito cardiovascular 2,5% vs 3,1% (OR=0,69; IC 95% = 0,48-0,99; p = 0,04) também a favor do tratamento completo nesta população com IAMCESST sem choque cardiogênico(2)

E como seria o comportamento dessa estratégia em pacientes idosos?

Estudo multicêntrico (FIRE Trial)(3), publicado em 2023, randomizou 1445 pacientes com ao menos 75 anos, admitidos com coronariopatia aguda (IAMcomESST ou IAMsemESST), que tenha sido feito ICP do vaso culpado com sucesso, e tenha doença multivascular, para tratamento isolado do vaso culpado versus tratamento completo guiado por fisiologia; randomização ocorreu no momento do procedimento índice em 877 pacientes (60,7%), e dentro das 48 horas após o procedimento nos 568 pacientes restantes (39,3%). Ressalta-se que a mediana da idade foi de 80 anos, 528 pacientes (36,5%) eram do sexo feminino, 509 (35,2%) apresentaram com IAMcomESST (64,8% de IAMsemESST), o intervalo entre o tratamento do vaso culpado e o tratamento do(s) vaso(s) não  culpado(s) teve mediana de 3 dias, e o acesso radial foi realizado em cerca de 93,5%.  O desfecho primário composto de morte, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, ou necessidade de revascularização em 1 ano, ocorreu em 113 pacientes (15,7%) no grupo revascularização completa e em 152 pacientes (21,0%) no grupo revascularização isolada do vaso culpado (OR 0,73; 95% IC 0,57 – 0,93; P=0,01). Esse benefício foi devido à redução de cada componente individualmente, exceto a ocorrência de acidente vascular cerebral. Na tabela abaixo demonstramos os principais desfechos de eficácia e segurança.

Desfecho Revascularização Vaso Culpado (N=725) Revascularização Completa (N=113) OR (95% CI) P
Desfecho Primário
Morte, Infarto do Miocárdio, Acidente Vascular Cerebral, ou Revascularização Guiada por Isquemia 152 (21%) 113 (15,7%) 0.73 (0.57–0.93) 0.01
Desfecho Secundário Principal 
Morte Cardiovascular ou Infarto do Miocárdio 13,5% 8,9% 0.64 (0.47–0.88)
Outros Desfechos Secundários
Morte (qualquer causa) 12,8% 9,2% 0.70 (0.51–0.96)
Morte Cardiovascular  7,7% 5,0% 0.64 (0.42–0.97)
Infarto do Miocárdio  7,0% 4,4% 0.62 (0.40–0.97)
Morte ou Infarto do Miocárdio 18,3% 12,9% 0.68 (0.52–0.88)
Acidente Vascular Cerebral 1,0 1,7% 1.73 (0.68–4.40)
Revascularização Guiada por Isquemia 6,8% 4,3% 0.63 (0.40–0.98)
Desfecho de Segurança
Composto Injuria Renal Aguda Induzida pelo Contraste, AVC, ou Sangramento BARC 3,4, ou 5 20,4% 22,5% 1.11 (0.89–1.37) 0,37
Injuria Renal Aguda Induzida pelo Contraste 16% 17,9% 1.11 (0.87–1.42)
Sangramento BARC 3,4, ou 5 5,0% 4,7% 0.95 (0.59–1.53)

Sabemos que, em especial nesta população mais idosa, o objetivo do tratamento deve ser a manutenção da “qualidade de vida”, muito mais do que a extensão da mesma sem a devida qualidade. 

Portanto, conclui-se que essa população idosa, com maior número de comorbidades, mais frágil, e com maior frequência de eventos adversos, também apresentou benefícios quando submetido à revascularização completa, isto é, quando foram tratados o vaso culpado pela coronariopatia aguda (com ou sem elevação do segmento ST) e as lesões residuais guiadas por estudo fisiológico (reserva de fluxo coronariano).

Referências:

1 – Mehta SR, Wood DA, Storey RF, et al, for the COMPLETE Trial Investigators. Complete Revascularization with Multivessel PCI for Myocardial Infarction. N Engl J Med. 2019;381(15):1411–21. 

2 – Bainey KR, Engstrøm T, Smits PC, et al. Complete vs Culprit-Lesion-Only Revascularization for ST-Segment Elevation Myocardial Infarction: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Cardiol. 2020;5(8):881–8.

3 – S. Biscaglia, V. Guiducci, J. Escaned, et al, for the FIRE Trial Investigators. Complete or Culprit-Only PCI in Older Patients with Myocardial Infarction. N Engl J Med. 2023;389:889-98.

Aula 7: quando indicar revascularização ou troca valvar concomitante

Dra Pâmela Cavalcante

Conheça a importância da revascularização na presença de estenose aórtica e doença arterial coronária. Saiba como esse procedimento pode beneficiar pacientes de alto risco.

 

Sabemos que os fatores de risco associados ao desenvolvimento de estenose aórtica também são comuns ao desenvolvimento de doença arterial coronária (DAC). A prevalência de DAC em pacientes portadores de estenose aórtica ultrapassa 50% em alguns registros. Na população idosa e de alto risco cirúrgico, esta proporção tende a ser ainda mais significativa. Na amostra de pacientes incluídas nos grandes estudos de TAVI, observamos uma elevada prevalência de DAC nos pacientes de maior risco para intervenção (PARTNER 1), reduzindo de 81 % para 15 % nos estudos com pacientes de baixo risco (PARTNER 3).  

Quando consideramos a avaliação da presença de DAC e sua quantificação para indicação de abordagem concomitante, alguns aspectos devem ser ressaltados. De acordo com a diretriz brasileira, devemos investigar DAC em pacientes acima de 40 anos, com fatores de risco para aterosclerose, na presença de angina, disfunção ventricular esquerda ou para avaliação de etiologia de IM secundária. As estratégias de avaliação anatômicas, seja cinecoronarioangiografia ou angiotomografia de coronárias, são preferíveis às provas funcionais, como cintilografia de perfusão miocárdica. Isso porque a hipertrofia miocárdica secundária à estenose aórtica pode alterar a reserva de fluxo coronariano, levando a um padrão balanceado e dificultando a avaliação de lesões com repercussão hemodinâmica significativa. Para pacientes com elevada probabilidade pré-teste de DAC, a cinecoronariografia segue sendo o padrão ouro para o diagnóstico de DAC importante neste grupo. Já para aqueles com probabilidade pré-teste baixa ou intermediária, a realização de angiotomografia de coronárias é razoável, sobretudo na era transcateter, em que é possível realizar também o planejamento tomográfico pré-intervenção, incluindo avaliação de acessos vasculares para o procedimento. Em relação a avaliação funcional com FFR ou iFR para lesões moderadas a importantes, pacientes com estenose aórtica importante não foram incluídos nos estudos com FFR. Contudo, o iFR parece não ser influenciado pela presença de estenose aórtica, talvez por não haver necessidade de uso de vasodilatador. 

De uma forma geral, a indicação de abordagem concomitante visa reduzir os riscos periprocedimentos e otimizar os resultados a longo prazo. Portanto, é razoável indicar revascularização pré-procedimento para pacientes com lesões importantes proximais ou de tronco de coronária esquerda, sobretudo em pacientes mais jovens, em que se espera uma maior expectativa de vida e com maior probabilidade de novas abordagens no futuro. Isto é particularmente importante, em pacientes com fatores de risco para oclusão coronária pós-TAVI, em que um novo acesso das coronárias pode ser bastante desafiador.

Contudo, existe uma grande controvérsia em relação ao impacto prognóstico da DAC nos pacientes com estenose aórtica importante submetidos à intervenção valvar percutânea. Não existem estudos randomizados até o momento e os principais estudos observacionais e meta-análises têm resultados conflitantes. Se por um lado, a presença de lesões proximais, DAC multiarterial e SYNTAX score elevado estão associados a um pior prognóstico, por outro lado, quando realizada a análise estatística ajustada para DAC, esta não revelou ter associação com aumento de mortalidade após procedimento.

 

No cenário da TAVI, a revascularização está indicada antes do procedimento quando:

  • Pacientes que serão submetidos ao TAVI, com lesões obstrutivas importantes proximais ou de tronco de coronária esquerda (>70%), com ou sem angina, é recomendado realizar angioplastia antes da TAVI (Nível de indicação 2a), pelo risco de isquemia durante o pace rápido para liberação da prótese;
  • Quando consideramos troca valvar e revascularização miocárdica cirúrgicas, o cenário é mais claro. Pelas diretrizes atuais,  as recomendações consideram para tratamento concomitante, pacientes com lesões importantes > 70% ou lesão de tronco > 50%. Portanto, pacientes com DAC estável moderada, poderiam ser conduzidos clinicamente, enquanto aqueles com DAC importante, multiarterial ou complexa com SYNTAX score >33 ainda podem se beneficiar da abordagem cirúrgica simultânea. 

 

Em relação a outra troca valvar concomitante ao tratamento da estenose aórtica importante, alguns aspectos devem ser considerados na avaliação da gravidade das lesões valvares, sobretudo nas insuficiências, que podem ser superestimadas em razão da sobrecarga pressórica gerada pela estenose aórtica importante. Nos casos em que a troca valvar aórtica cirúrgica está indicada, é recomendável intervir simultaneamente em pacientes portadores de insuficiência mitral primária importante. Já os pacientes com insuficiência mitral secundária importante, pode se considerar intervenção concomitante a depender da dilatação do anel e do remodelamento ventricular, desde que o risco cirúrgico seja aceitável. Em relação a tricúspide, a grande maioria dos casos são insuficiências secundárias e a indicação de intervenção deve ser individualizada para pacientes muito bem selecionados, como aqueles com dilatação importante do anel, devido a escassez de evidências que corroborem para intervenção concomitante neste grupo. Pacientes com IT moderada a importante, sintomáticos ou com complicadores devem ser considerados para abordagem também. Vale ressaltar ainda, que quando não são abordados conjuntamente, esses pacientes podem evoluir com insuficiências valvares isoladas, necessitando de novas intervenções futuras. Pacientes com indicação de intervenção por outra valvopatia, devem considerar abordagem concomitante de troca valvar aórtica, se estenose moderada, por oportunidade. 

Na era transcateter, observamos que após a TAVI, as regurgitações mitrais e tricúspides tendem a involuir, já que a sobrecarga de pressão gerada pela estenose aórtica foi corrigida. Dessa forma, podemos ser mais permissivos na indicação de abordagem percutânea concomitante destas patologias. 

Pelas diretrizes atuais, é recomendável considerar, após a TAVI, abordagem percutânea mitral (edge-to-edge) para pacientes que se mantém sintomáticos, em terapia clínica otimizada, com insuficiência mitral primária importante, anatomia favorável e risco cirúrgico proibitivo. Já para aqueles com insuficiência mitral secundária, podemos também considerar intervenção, a depender das características anatômicas e clínicas destes pacientes. Para aqueles que se mantêm sintomáticos, com tratamento medicamentoso otimizado, sem remodelamento ventricular significativo, a intervenção percutânea (edge-to-edge) pode ser considerada. 

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Nessa nova aula de Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre Estenose Aórtica, a Dra Pâmela Cavalcante explica quando indicar a revascularização ou a troca valvar concomitante, de acordo com a avaliação individual de cada paciente.