Dr. Roger Godinho
Em meio às inúmeras discussões sobre suplementação hormonal para fins de ganho de massa muscular e melhora do desempenho esportivo, a segurança cardiovascular do uso médico da terapia de reposição com testosterona em homens de meia-idade e idosos com hipogonadismo surge como um tema de intenso debate e interesse clínico significativo. Historicamente, a terapia de reposição com testosterona tem sido utilizada para tratar os sintomas de hipogonadismo, condição caracterizada por baixos níveis de testosterona, que pode afetar negativamente a qualidade de vida, a saúde sexual, a massa óssea, e a composição corporal. No entanto, o impacto dessa terapia na saúde cardiovascular dos pacientes permanece um campo de investigação aberto, marcado por preocupações e dados conflitantes.
O estudo TRAVERSE, publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) em julho de 2023, foi concebido para elucidar essas incertezas, investigando os efeitos da terapia de reposição com testosterona na incidência de eventos cardíacos adversos maiores em um grupo específico de homens com alto risco cardiovascular. Este estudo assume uma importância particular no contexto atual da prática médica, onde a tomada de decisão clínica deve ser justificada por evidências claras e confiáveis, especialmente em tratamentos que afetam uma parcela significativa da população masculina.
O estudo TRAVERSE foi um ensaio clínico multicêntrico, randomizado, duplo-cego, controlado por placebo e de não inferioridade. Foram randomizados 5246 homens entre 45 e 80 anos com doença cardiovascular pré-existente ou alto risco de desenvolvê-la, que reportaram um ou mais sintomas de hipogonadismo, como diminuição do desejo sexual, diminuição do número de ereções espontâneas, fadiga, humor depressivo, diminuição de pelos axilares, púbicos ou diminuição da frequência do barbear ou fogachos. Além disso, os indivíduos precisavam apresentar duas medidas de testosterona em jejum menores que 300 ng/dL. Doença cardiovascular foi definida como evidência clínica ou angiográfica de doença arterial coronariana, doença cerebrovascular ou doença arterial periférica. O aumento do risco cardiovascular foi definido pela presença de três ou mais dos seguintes fatores de risco: hipertensão, dislipidemia, tabagismo atual, doença renal crônica estágio 3, diabetes, níveis elevados de proteína C-reativa de alta sensibilidade, idade maior que 65 anos, ou um escore de cálcio coronariano acima do percentil 75 para idade e raça. A partir disso, os participantes foram aleatoriamente designados para receber gel de testosterona a 1,62%, transdérmico, ou placebo. A dose de testosterona foi ajustada com o intuito de manter os níveis séricos entre 350 e 750 nd/dL no grupo “testosterona”. No grupo placebo a dose foi ajustada utilizando o método sham*. O objetivo principal foi avaliar a ocorrência do primeiro evento de um composto de morte por causas cardiovasculares, infarto do miocárdio não fatal ou acidente vascular cerebral não fatal.
Os pacientes foram tratados durante uma média de 21,7 meses e acompanhados por 33,0 meses. O desfecho primário foi observado em 182 (7,0%) indivíduos no grupo de testosterona e 190 (7,3%) no grupo placebo. Não foram observadas diferenças clinicamente significativas na incidência de eventos cardiovasculares secundários entre os grupos de estudo. Entretanto, a incidência de embolia pulmonar foi maior no grupo da testosterona (0,9% vs. 0,5% no grupo placebo). As arritmias não fatais que exigiram intervenção ocorreram em 134 pacientes (5,2%) no grupo da testosterona e em 87 pacientes (3,3%) no grupo placebo (P = 0,001); fibrilação atrial ocorreu em 91 pacientes (3,5%) e 63 pacientes (2,4%), respectivamente (P = 0,02), e lesão renal aguda ocorreu em 60 pacientes (2,3%) e 40 pacientes (1,5%), respectivamente (P = 0,04). O câncer de próstata ocorreu em 12 pacientes (0,5%) no grupo da testosterona e em 11 pacientes (0,4%) no grupo placebo (P = 0,87).
Esses dados demonstram a não inferioridade da testosterona em relação ao placebo quanto ao risco de eventos cardíacos adversos maiores, a despeito do aumento na incidência de fibrilação atrial, lesão renal aguda e embolia pulmonar no grupo tratado com testosterona.
O artigo conclui que a terapia de reposição com testosterona, quando comparada com placebo, não resultou em um aumento do risco cardiovascular global em homens com hipogonadismo e elevado risco cardiovascular. Contudo, chama atenção a maior frequência de outros eventos adversos, o que levanta questões importantes sobre o perfil de segurança da terapia em determinadas populações (portadores de doença renal crônica, arritmia atrial, trombofilia ou indivíduos com antecedentes de eventos tromboembólicos), e da necessidade de um acompanhamento individual rigoroso.
Pontos Fortes
Amostra e Desenho do Estudo: Grande tamanho amostral e um desenho de estudo meticuloso reforçam a validade dos resultados.
Relevância Clínica: Fornece dados cruciais que podem guiar práticas clínicas na terapia de reposição de testosterona.
Robustez Estatística: Análises estatísticas rigorosas e bem fundamentadas.
Pontos Fracos
Generalização: A seleção de participantes com alto risco cardiovascular pode limitar a aplicabilidade dos resultados a uma população mais ampla.
Adesão e Retenção: Taxas de adesão e retenção relativamente baixas podem ter influenciado os resultados.
* O método sham é uma técnica utilizada em estudos clínicos para simular uma intervenção médica ou cirúrgica. Ele serve como um controle placebo, onde os participantes passam por um procedimento falso que imita o real em todos os aspectos, exceto pelo fato de que a intervenção terapêutica efetiva não é realmente realizada. Isso permite aos pesquisadores testar os efeitos da expectativa e do condicionamento psicológico em estudos para determinar a eficácia real de um tratamento.
Referência
- Lincoff, A. M. et al. (2023). Cardiovascular safety of testosterone-replacement therapy. The New England Journal of Medicine, 389(2).