Ascensão e queda da Ischemia ≥ 10% na revascularização miocárdica – Parte 2: O racional prático
Dra. Luhanda Leonora Cardoso Monti Sousa
Após anos utilizando a ISCHEMIA ≥ 10% como ponto de corte a partir do qual, a revascularização miocárdica estaria indicada para melhora de sobrevida na doença arterial coronária (DAC) crônica, com a publicação do ISCHEMIA trial, as diretrizes contemporâneas, abandonaram este quesito como fator prognóstico isolado para indicar a revascularização miocárdica, de tal modo que, atualmente, nos perguntamos se ainda há espaço para isquemia neste cenário.
O primeiro ponto a ser levantado é que, conforme explicado em post prévio: as bases que sustentavam essa indicação eram oriundas de estudos observacionais e somente após o ISCHEMIA é que tivemos dados robustos. No entanto, estes devem ser interpretados com cautela na prática clínica. O segundo ponto é que a presença de isquemia, sobretudo ≥ 10%, continua a configurar um sinal de gravidade em pacientes com DAC crônica, muito embora nenhum estudo robusto tenha conseguido demonstrar plausibilidade biológica que justifique a revascularização de rotina nesses indivíduos.
Porquê da ascensão e queda isquemia ≥ 10%
Tudo começou com Hachamovitch 2, como descrito em post prévio. Posteriormente, os autores de um subestudo do COURAGE, até chegaram a sugerir que partindo de uma isquemia basal moderada a grave, a redução da isquemia residual ≥ 5% poderia ser um alvo terapêutico. No entanto, isto foi apenas uma sugestão, pois a correlação com redução de morte cardiovascular (CV) e infarto agudo do miocárdio (IAM) ocorreu apenas pelo modelo não ajustado (p= 0,001), sem diferença para o modelo ajustado ao risco (p=0,08). A esse respeito, no ISCHEMIA trial, pacientes com DAC crônica e isquemia moderada a importante, tanto o seguimento de 3,2 anos quanto o de 5,7 anos, a revascularização não diferiu do tratamento conservador em termos de mortalidade geral. Embora análises posteriores tenham mostrado uma redução de IAM espontâneo e melhora de angina e redução de morte CV em pacientes do grupo intervenção, estas foram sub análises de um estudo com desfecho primário negativo. Dessa forma, tais dados devem ser considerados de forma individualizada na tomada de decisão, mas com cautela, pois também devemos considerar que houve um aumento de morte por causas não CV no mesmo grupo. As sub-análises do ISCHEMIA EXTEND, revelaram que a gravidade da isquemia se associou com IAM, ao passo que a presença de DAC extensa (escore prognóstico de Duke modificado) se associou não somente ao IAM, como também a maior mortalidade CV. Não obstante, no que tange a sub-análise de completude da revascularização em 1801 pacientes do grupo intervenção do ISCHEMIA, quando comparados aos pacientes do grupo conservador, a revascularização anatômica completa reduziu os eventos ajustados de morte e IAM em 3,5% aos 4 anos (95% CI: -7,2% a 0,0%), ao passo que a revascularização funcional completa redução as taxas de eventos em apenas 2,7% (95% CI: -5,9% a 0,3%). Tais resultados corroboram dados pregressos do estudo, que já mostravam que a complexidade anatômica, parece ser um preditor mais relevante do que a isquemia em termos de eventos CV e resposta à revascularização.
O que dizem as diretrizes:
Em 2021, a ACC/AHA/SCAI Coronary Revascularization guideline, incorporou os resultados do ISCHEMIA, não mais indicando intervenção para prognóstico baseado apenas no grau de isquemia. Outrossim, deu um “downgrade” para IIb nas indicações de revascularização visando reduzir mortalidade global e IIa com o objetivo de reduzir morte CV e IAM, em pacientes multiarteriais, na ausência de lesão de tronco de coronária esquerda (TCE) ou disfunção ventricular e nem mesmo citou isquemia neste cenário. Não obstante, o guideline 2023 AHA/ACC/ACCP/ASPC/NLA/PCNA Chronic Coronary Disease, direcionou os testes funcionais como estratificadores de risco CV e auxiliar na tomada de decisão de casos duvidosos ou em pacientes com sintomas novos ou em piora, mas também não inclui a ISCHEMIA ≥ 10% para indicar intervenção por prognóstico de maneira isolada.
Mas afinal, ainda há espaço para teste de isquemia? Como utilizá-lo na prática?
Opinião de especialista:
Do ponto de vista prático, a isquemia ≥10%, continuará a motivar a estratificação anatômica, até porque, é um marcador de pior prognóstico. Além disso, todos os pacientes do ISCHEMIA trial, tiveram lesão de TCE excluída, seja por angiotomografia de coronárias ou cateterismo cardíaco prévio. No que tange a indicação de revascularização por prognóstico, é provável que fique a cargo da anatomia e seu burden aterosclerótico, de acordo com o número e localização das lesões, ou seja, se estamos diante de uma anatomia de alto risco, como no caso da lesão em TCE e artéria derradeira e multiarteriais com lesões suboclusivas, bem como da função ventricular. Obviamente que nestes casos, a presença de isquemia definitivamente traduz a gravidade.
Neste cenário, a isquemia passa a ter um papel complementar na tomada de decisão, sobretudo na presença de sintomas duvidosos ou lesões ambíguas, mas não deve ser usada como fator prognóstico isolado.
Testes de isquemia como divisor de águas para tomada de decisão em conjunto com outras características:
- Revascularização indicada por angina atípica, cuja análise do sintoma gera dúvidas;
- Presença de disfunção ventricular, a isquemia moderada-importante em território correspondente à artéria estenosada, sobretudo quando há dúvida acerca da etiologia da disfunção, funcionalidade de lesões moderadas e excêntricas e até mesmo quando dúvida acerca da efetividade da revascularização, já que quem tem isquemia, tem viabilidade;
- Dúvida quanto a funcionalidade de lesões excêntricas em cenários diversos;
- Nestes cenários, com certeza, testes isquêmicos continuarão exercendo o seu papel.
Referências
- Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019 Jan;40(2):87–165. https://doi. org/10.1093/eurheartj/ehy394
- Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/ AHA/SCAI guideline for coronary artery revas- cularization: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Cir- culation. 2022 Jan;145(3):e18–114.
- Anthopolos R, Maron DJ, Bangalore S, Reynolds HR, Xu Y, O’Brien SM, Troxel AB, Mavromichalis S, Chang M, Contreras A, Hochman JS on behalf of ISCHEMIA-EXTEND Research Group. American Heart Journal. 2022 Oct 04.
- Stone, Gregg W et al. “Impact of Complete Revascularization in the ISCHEMIA Trial.” Journal of the American College of Cardiology vol. 82,12 (2023): 1175-1188. doi:10.1016/j.jacc.2023.06.015.