Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 12: endocardite em câmaras direitas

Flávia Potsch Câmara Mattos Girard

A endocardite infecciosa (EI) de valvas direitas representa aproximadamente 5 a 10% dos pacientes com endocardite infecciosa, sendo que os principais fatores de risco incluem a presença de cardiopatias congênitas cianogênicas, cateteres permanentes, dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis, imunossupressão e uso de drogas injetáveis. 

 

O microrganismo mais prevalente na EI do lado direito é o Staphylococcus aureus e a valva tricúspide é muito mais frequentemente envolvida do que a valva pulmonar. 

O quadro clínico envolve febre, bacteremia e sintomas pulmonares como tosse, dor torácica e hemoptise, estes últimos relacionados à embolização séptica pulmonar. A EI do lado direito raramente se espalha para as câmaras esquerdas, porém o contrário não é incomum.  Quando presente, a insuficiência cardíaca decorre da insuficiência da valva tricúspide e/ou pulmonar ou pela hipertensão pulmonar induzida pelas embolizações sépticas.

Dentre os critérios de Duke, o critério de imagem frequentemente se limita à adequada avaliação proporcionada pela ecocardiografia transtorácica, em vista da localização anterioriozada da valva tricúspide e do tamanho geralmente grande das vegetações na EI do lado direito. A ecocardiografia transesofágica, entretanto,  é recomendada em todos os pacientes com suspeita de endocardite relacionada a dispositivos cardíacos, com ou sem hemoculturas positivas, independentemente dos resultados da ecocardiografia transtorácica, para avaliar a presença de infecção nos cabos e nas valvas cardíacas (I/C). A tomografia computadorizada é útil para identificar doenças pulmonares concomitantes, incluindo infartos e abscessos, embora estes sejam raros na EI do lado direito. A Tomografia por Emissão de Pósitrons com 18F-Fluorodesoxiglicose (FDG-PET) e a ecocardiografia intracardíaca têm sido empregados para avaliação da valva pulmonar, uma vez que mesmo a ecocardiografia transesofágica pode ter dificuldade na avaliação de vegetações nesta topografia. 

A EI do lado direito geralmente apresenta um quadro clínico mais benigno do que a EI do lado esquerdo, podendo ser tratada com antibioticoterapia em cerca de 90% dos pacientes. As taxas de mortalidade em pacientes usuários de drogas injetáveis e EI de câmaras direitas são relativamente mais baixas, provavelmente devido à idade jovem desses pacientes, embora as taxas de recidiva sejam maiores neste perfil.  Assim como os pacientes com EI de câmaras direitas relacionadas a dispositivos eletrônicos cardíacos implantáveis têm pior prognóstico, pacientes imunocomprometidos, especialmente afetados por infecções fúngicas, tem prognóstico muito ruim.

Os Staphylococcus aureus e cocos coagulase-negativos são responsáveis pela maioria dos casos de EI do lado direito, com S. aureus predominando em pacientes usuários de drogas injetáveis e cocos coagulase negativos em portadores de dispositivos implantados. As taxas de MRSA (Staphylococcus aureus resistente à meticilina) são crescentes e o agente Streptococcus spp. é incomum, podendo ser encontrado em diabéticos e alcoolistas. Pseudomonas aeruginosa e outros Gram-negativos raramente estão empregados, enquanto a Candida albicans aparece principalmente em pacientes imunocomprometidos, lhes conferindo pior prognóstico. 

O tratamento com antibióticos empírico deve ser realizado com vancomicina devido risco de infecção por bactérias MRSA. Após isolamento do agente, a terapia deve ser ajustada e o tempo estimado padrão é de 4-6 semanas. 

Em aproximadamente 10% dos casos de EI do lado direito será indicada a intervenção cirúrgica e deve-se dar preferência pelo reparo da valva tricúspide ao invés da substituição valvar (IIa/B) em vista de melhores resultados a curto e longo prazo, tanto em relação à recorrência de endocardite quanto à necessidade de nova cirurgia. Quando a extensão da destruição valvar impede o reparo e a substituição valvar é necessária, a preferência é por próteses biológicas devido aos riscos do uso de anticoagulação vitalícia em próteses mecânicas e do tromboembolismo no coração direito. 

O tratamento cirúrgico deve ser considerado nos seguintes cenários nos casos de endocardite direita: 

– Insuficiência cardíaca direita secundária a regurgitação tricúspide severa não responsiva a diuréticos (I/B)

– Vegetação persistente com insuficiência respiratória necessitando de suporte ventilatório após embolias pulmonares recorrentes (I/B)

– Vegetações persistentes na valva tricúspide >20 mm após episódios recorrentes de embolia pulmonar (I/C)

– Pacientes com envolvimento simultâneo de estruturas cardíacas esquerdas (I/C)

– Pacientes que estejam recebendo terapia antibiótica adequada e apresentem bacteremia persistente após pelo menos uma semana de antibioticoterapia adequada (IIa/C)

A remoção da carga séptica (debulking) de massas sépticas intra-auriculares direitas por aspiração em pacientes com alto risco cirúrgico tem sido discutida (IIb/C). Quando a EI de câmaras direitas está associada a dispositivos eletrônicos cardíacos implantáveis, a extração completa do dispositivo deve ser considerada mesmo sem envolvimento definitivo dos cabos, levando em conta o patógeno identificado e a necessidade de cirurgia valvar. (IIa). Quando indicado, a reimplantação definitiva deve ser realizada em um local distante do gerador anterior, o mais tardar possível, após a resolução dos sinais e sintomas de infecção, e com hemoculturas negativas por pelo menos 72 horas na ausência de vegetações, ou negativas por pelo menos 2 semanas se vegetações forem visualizadas(I/C). 

Literatura sugerida: 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis

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A endocardite infecciosa de câmaras direitas e esquerdas são diferentes – você sabe diferenciar, diagnosticar e tratar?

Dr. Vitor Rosa explica o assunto no último episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 11 – Situações especiais: endocardite de dispositivos intracardíacos

Layara Fernanda Vicente Pereira Lipari

Situações especiais: endocardite de dispositivos intracardíacos

As infecções relacionadas a dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis (DCEIs) são complicações relacionadas a dispositivos como marcapassos, desfibriladores implantáveis e ressincronizadores. Elas podem ser locais, ou seja, relacionadas à loja do gerador ou infecções mais graves e sistêmicas como é o caso da endocardite infecciosa. Em uma série brasileira de cerca de 500 casos de endocardite ocorridos em um período de 17 anos, cerca de 7% foram relacionados a dispositivos intracardíacos. 

As infecções locais são a apresentação mais comum das infecções de DCEI, representando 60% dos casos. São mais comuns logo após o procedimento cirúrgico de implante ou troca do gerador, porém também podem ocorrer mais tardiamente tanto por contaminação local e erosão da pele adjacente ao dispositivo quanto por bacteremia. 

O acometimento intravascular exclusivo, ou seja, endocardite sem comprometimento da loja do gerador, ocorre em cerca de 20% dos casos, principalmente por bacteremia relacionada a infecção de outro foco (tromboflebite, osteomielite, pneumonia, cateteres vasculares contaminados ou infecção bacteriana originada da pele, boca, trato gastrointestinal ou urinário).

A etiologia varia com relação ao tipo de infecção – se localizada ou sistêmica – e na série de casos de endocardite já mencionada, a maior parte foi de origem nosocomial, correspondendo a cerca de 50% dos casos, seguida de comunitária em cerca de 30% e finalmente cerca de 20% relacionada à assistência à saúde não nosocomial. O principal patógeno identificado foi o Staphylococcus aureus, seguido por gram-negativo não HACEK e fungos. 

As principais complicações foram insuficiência renal aguda, embolização, insuficiência cardíaca aguda e nessa série a mortalidade hospitalar foi de 40% dos casos. 

O diagnóstico definitivo de infecção relacionada a dispositivos se fundamenta na presença de coleção purulenta ou exteriorização do dispositivo ao exame físico; do crescimento de microrganismos em hemoculturas e da presença de vegetações na valva tricúspide ou em cabos e eletrodos evidenciada pelo ecocardiograma transesofágico (PET-CT pode ser recomendado quando necessário). 

Os fatores de risco para infecções relacionadas a DCEIs incluem reoperações (incluindo implante de dispositivo e troca de gerador), história de infecção de dispositivo prévia, febre antes do implante, idade jovem, tipo de dispositivo (como ressincronizador) e comorbidades como insuficiência renal, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes, insuficiência cardíaca, dermatite e outras. 

As medidas com classe de recomendação I para prevenir infecção de dispositivos são: postergar o procedimento em pacientes com infecção vigente, evitar dispositivos invasivos (marcapasso provisório e acesso venoso central) sempre que possível e, quando utilizados, idealmente, devem ser removidos antes da introdução do dispositivo; evitar hematoma de loja (quando possível, suspender antiplaquetários, evitar “ponte” com heparina, dentre outros), fazer a antibioticoprofilaxia pré-operatória adequada. Outras medidas como o uso do envelope antibiótico, antibiótico pós-operatório podem ser indicadas em alguns casos e a drenagem de hematomas deve ser contraindicada. 

O tratamento tem como bases a antibioticoterapia, o suporte clínico e a cirurgia de extração do dispositivo quando indicada. A antibioticoterapia deve ser introduzida baseada na hemocultura e só deve ser iniciada empírica e precocemente caso o paciente esteja instável ao momento do diagnóstico. O acometimento do dispositivo demarca maior gravidade e implica na conduta de remoção. O diagnóstico deve ser feito de maneira precisa, pois a retirada desnecessária do dispositivo também implica no risco do procedimento de extração. Para implantes recentes o procedimento de explante costuma ser tecnicamente mais fácil, mas de maneira geral, a extração somente deverá ser realizada quando o paciente estiver estável tanto do ponto de vista hemodinâmico quanto infeccioso, haja vista os riscos associados ao procedimento (principalmente por aderências).

Para pacientes com infecção relacionada ao dispositivo confirmada, seja ela local ou sistêmica, está recomendado remoção completa do sistema, por isso é importante buscar a confirmação da infecção e, em casos de bacteremia sem confirmação adequada, a conduta de remover o dispositivo também deve levar em consideração o patógeno envolvido, reforçando aqui também a importância da coleta das culturas antes da antibioticoterapia. 

Nos casos de infecção superficial, o tratamento pode ser feito exclusivamente com antibioticoterapia porém nos casos de infecção de dispositivo, além da indicação de explante o grau de acometimento determina o tempo de antibioticoterapia, sendo de até 4 a 6 semanas nos casos de endocardite com vegetação em valvas ou nos cabos do dispositivo e embolização. 

Após a extração é importante sempre questionar e reavaliar a indicação do dispositivo para então definir o melhor momento para o procedimento. O implante do novo dispositivo deve ser realizado somente após remissão completa do processo infeccioso, e deve ser definido em função do quadro clínico, indicando dispositivos temporários (quando essenciais) até que se estabeleça o melhor momento para reimplante do dispositivo, que deve ser implantado preferencialmente em um local diferente, como o sítio contralateral. O procedimento deve ser evitado ou adiado, sempre que possível, até que os sinais e sintomas de infecção local e sistêmica sejam completamente resolvidos e nos pacientes dependentes de marcapasso, é recomendado o uso de um dispositivo temporário no mesmo lado do sistema removido, enquanto aguardam o novo implante definitivo. A diretriz europeia menciona ainda que o cenário ideal para o reimplante envolve culturas negativas por tempo igual ou superior a 72h na ausência de vegetações ou pelo menos 2 semanas quando ainda houver vegetações ao ecocardiograma.

Em resumo, a profilaxia da infecção de dispositivos envolve medidas perioperatórias importantes, incluindo evitar dispositivos invasivos, evitar formação de hematoma e realizar profilaxia antimicrobiana. Para o tratamento das infecções relacionadas a dispositivos, a antibioticoterapia deve ser guiada por cultura e a cirurgia de explante é geralmente recomendada, por isso o diagnóstico precisa ser acurado, evitando indicações imprecisas de procedimentos invasivos e complexos. O reimplante, quando indicado, deve ser realizado após o tratamento e controle do quadro infeccioso e distante do sítio prévio para minimizar o risco de recorrência.

 

Referências:

1- Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias – 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(4):720-775.

2 – Delgado, V et al, ESC Scientific Document Group , 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis: Developed by the task force on the management of endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) Endorsed by the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS) and the European Association of Nuclear Medicine (EANM), European Heart Journal, Volume 44, Issue 39, 14 October 2023, Pages 3948–4042, https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehad193.

3 – Teixeira RA, Fagundes AA, Baggio-Junior JM, Oliveira JC, Medeiros PTJ, Valdigem BP, et al. Diretriz Brasileira de Dispositivos Cardíacos Eletrônicos Implantáveis – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023; 120(1):e20220892

4 – Chesdachai S, Esquer Garrigos Z, DeSimone CV, DeSimone DC, Baddour LM. Infective Endocarditis Involving Implanted Cardiac Electronic Devices: JACC Focus Seminar 1/­4. Journal of the American College of Cardiology. 2024;83(14):1326-1337. doi:10.1016/j.jacc.2023.11.036.  Leading Journal  New Research.

5 – Kusumoto FM, Schoenfeld MH, Wilkoff BL, et al. 2017 HRS Expert Consensus Statement on Cardiovascular Implantable Electronic Device Lead Management and Extraction. Heart Rhythm. 2017;14(12):e503-e551. doi:10.1016/j.hrthm.2017.09.001.

6 – Blomström-Lundqvist C, Traykov V, Erba PA, et al. European Heart Rhythm Association (EHRA) International Consensus Document on How to Prevent, Diagnose, and Treat Cardiac Implantable Electronic Device Infections-Endorsed by the Heart Rhythm Society (HRS), the Asia Pacific Heart Rhythm Society (APHRS), the Latin American Heart Rhythm Society (LAHRS), International Society for Cardiovascular Infectious Diseases (ISCVID), and the European Society of Clinical Microbiology and Infectious Diseases (ESCMID) in Collaboration With the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). European Heart Journal. 2020;41(21):2012-2032. doi:10.1093/eurheartj/ehaa010.

7 – Olsen T, Jørgensen OD, Nielsen JC, et al. Risk Factors for Cardiac Implantable Electronic Device Infections: A Nationwide Danish Study. European Heart Journal. 2022;43(47):4946-4956. doi:10.1093/eurheartj/ehac576.

8 – Shawon MSR, Sotade OT, Li J, et al. Factors Associated With Cardiac Implantable Electronic Device-Related Infections, New South Wales, 2016-21: A Retrospective Cohort Study. The Medical Journal of Australia. 2024;220(10):510-516. doi:10.5694/mja2.52302.

9 – Carvalho, MGB et al. Endocardite infecciosa associada a dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis: série de casos. The Brazilian Journal of Infectious Diseases, Volume 27, Supplement 1, 2023, 103154, ISSN 1413-8670, https://doi.org/10.1016/j.bjid.2023.103154.

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Como diagnosticar e tratar a endocardite infecciosa relacionada a dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis?

A Dra. Layara Lipari esclarece essa questão no décimo primeiro episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 10 – Complicações à distância: como diagnosticar e tratar

Dra. Daniella Nazetta

Complicações à distância da endocardite infecciosa: Como diagnosticar e tratar

As complicações à distância da EI refletem a natureza sistêmica da doença e representam importantes causas de morbimortalidade. Elas ocorrem principalmente por meio de embolizações sépticas, que consistem no desprendimento de fragmentos de vegetações que podem se alojar em diversos órgãos, provocando infartos, abscessos, além de trazer graves repercussões clínicas potencialmente fatais. Dentre elas, destacam-se:

  1. Acidente Vascular Cerebral (AVC)

As manifestações neurológicas estão entre as mais frequentes e temidas, podendo ocorrer em até 40% dos casos. O AVC isquêmico, mais comum, ocorre resultante da obstrução de artérias pelo êmbolo e o AVC hemorrágico resulta especialmente em pacientes com aneurismas micóticos que se rompem. Os aneurismas nada mais são do que dilatações arteriais secundárias à fragilidade da parede vascular causada pela disseminação hematogênica de microrganismos. Além disso pode ocorrer abcesso cerebral e meningite asséptica ou purulenta, embora sejam menos frequentes.

O diagnóstico é realizado através de imagem cerebral como a tomografia ou ressonância magnética de crânio, e nos casos de suspeita de meningite, é necessária a realização de punção lombar. No caso do aneurisma micótico é necessária angiotomografia ou angiografia por ressonância magnética, essenciais para avaliar localização, forma e risco de ruptura. Em alguns casos, indica-se arteriografia cerebral.

O tratamento do AVC decorrente de EI se diferencia das outras etiologias de AVC. O tratamento com antibioticoterapia por pelo menos 4 a 6 semanas é essencial para controle infeccioso e de novas complicações. Além disso, no AVC isquêmico a trombólise é contraindicada devido alto risco de transformação hemorrágica decorrente do sangramento de aneurismas micóticos. A trombectomia mecânica pode ser realizada em casos individualizados, em até 24h do início dos sintomas e quando não houver contraindicação mecânica ou infecciosa. No AVC hemorrágico o tratamento incluí o suporte clínico e avaliação de aneurismas micóticos com risco de ruptura para embolização endovascular ou cirurgia.

O tratamento para os aneurismas pequenos, estáveis e assintomáticos incluí apenas o tratamento antimicrobiano da EI. Em casos de aneurismas com risco de ruptura, há preferência por embolização endovascular.

  1. Complicações oculares

A embolização séptica retiniana resulta de fragmentos de vegetações infectadas que migram para as artérias retinianas, causando infartos e hemorragias locais. Pode levar à perda visual súbita, parcial ou total, de um ou ambos os olhos, à depender onde o embolo irá se alojar.

As manchas de Roth são lesões hemorrágicas retinianas, com centro esbranquiçado, resultantes de fenômenos imunomediados (vasculite local). Embora não sejam patognomônicas, estão fortemente associadas a EI quando associadas a outros achados sugestivos. As lesões podem ser assintomáticas ou associadas a turvação visual.

O diagnóstico de ambas as complicações é realizado através de fundoscopia que irão mostrar áreas de isquemia e/ou hemorragias locais, e a clássica mancha de Roth.

Outras complicações oculares raras, mas potencialmente graves da endocardite são a endoftalmite e neurite óptica. O diagnóstico é feito por exame oftalmológico clínico completo incluindo campimetria visual, fundoscopia e ultrassonografia ocular. A cultura vítrea deve ser realizada, porém devido a gravidade, muitas vezes o tratamento já é iniciado antes mesmo do resultado da cultura.

A única complicação ocular que possuí tratamento específico é a endoftalmite, que requer antibioticoterapia intraocular além da sistêmica. A vitrectomia deve ser realizada de forma urgente em casos graves e de má resposta aos antimicrobianos. As demais complicações não possuem tratamento específico para reversão, além do tratamento com antibiótico para controle da infecção.

  1. Complicações renais

A glomerulonefrite imunomediada é uma das complicações renais mais clássicas da EI, e ocorre por mecanismo imunomediado. Há a formação de complexos imunes circulantes que se depositam nos glomérulos, resultando em inflamação e lesão capilar. O paciente cursa com hematúria (micro e/ou macroscópica), proteinúria, insuficiência renal aguda, e no geral acomete pacientes com EI por Streptococcus viridans.

Outras complicações renais menos comuns podem ocorrer, como: infarto renal por embolização séptica e abcesso renal. 

O diagnóstico é realizado através de tomografia de abdome, em alguns casos há a necessidade de biópsia renal e exames laboratoriais como ureia, creatinina e urina 1 também mostram alterações.

O tratamento baseia-se no controle da infecção com antibioticoterapia por pelo menos 4 a 6 semanas. A lesão renal tende a regredir conforme o controle infeccioso, porém em casos mais agressivos e de rápida evolução, pode ser necessária pulsoterapia.

  1. Complicações esplênicas

As complicações esplênicas ocorrem principalmente pela embolização séptica, podendo resultar em infarto e abcesso esplênico. O infarto pode ser assintomático e resulta da obstrução do fluxo de sangue. O abcesso surge quando o êmbolo causa uma infecção no tecido e o paciente normalmente apresenta febre persistente, dor esplênica e mal-estar. Ambas as complicações podem evoluir para um quadro mais grave e potencialmente fatal que é a ruptura esplênica. O paciente apresenta evolução rápida com dor aguda, hipotensão e sinais de choque hemorrágico. 

O diagnóstico é feito através de tomografia de abdome com contraste que identifica áreas de necrose e coleção purulenta. 

O infarto esplênico não complicado possuí manejo conservador com antibioticoterapia e acompanhamento clínico. Nos casos de abcesso esplênico, além do manejo com os antimicrobianos, alguns casos necessitam drenagem do abcesso e em casos mais graves, esplenectomia. A ruptura de baço, por ser tratar de uma complicação bastante grave, requer cirurgia de emergência.

  1. Complicações músculo-esqueléticas

A artrite séptica, osteomielite e espondilodiscite podem ocorrer por disseminação hematogênica do agente infeccioso. O paciente apresenta dor no local afetado, febre persistente e limitação do movimento.

O diagnóstico é realizado através de exame de ressonância magnética, e no caso da artrite séptica pode ser necessário punção e cultura do líquido sinoval.

Nos casos de artrite séptica o tratamento é realizado com antibioticoterapia direcionada, em alguns casos para alívio de sintomas é necessária punção articular ou drenagem cirúrgica em casos mais graves. Já na osteomielite e espondilodiscite, a antibioticoterapia deve ser mantida por no mínimo 6 semanas, é necessária a imobilização nos casos em que a coluna é afetada, e a cirurgia está reservada para os casos de compressão neurológica, instabilidade ou falha no tratamento clínico. 

  1. Complicações pulmonares

As complicações pulmonares ocorrem principalmente de endocardite do lado direito do coração, especialmente envolvendo a valva tricúspide, e frequentemente associada a usuários de drogas injetáveis ou portadores de dispositivos intracardíacos.

Assim como a maioria das outras complicações, as pulmonares também ocorrem por embolização séptica que pode resultar em: embolia pulmonar séptica, abcesso pulmonar, empiema e infarto pulmonar.

O diagnóstico é feito através de tomografia de tórax com ou sem contraste, a depender da necessidade. E o tratamento incluí antibioticoterapia prolongada guiada por hemocultura, quadro clínico e exame de imagem, além de drenagem do empiema/abcesso, em caso de necessidade.

 

Referências

  1. Delgado V, Haugaa KH, Montserrat S, Muraru D, Popescu BA, Dweck MR, et al. 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis. Eur Heart J. 2023;44(39):3948–4042. doi:10.1093/eurheartj/ehad193

  2. Baddour LM, Wilson WR, Bayer AS, Fowler VG Jr, Tleyjeh IM, Rybak MJ, et al. Infective Endocarditis in Adults: Diagnosis, Antimicrobial Therapy, and Management of Complications: A Scientific Statement for Healthcare Professionals From the American Heart Association. Circulation. 2015;132(15):1435–1486. doi:10.1161/CIR.0000000000000296

  3. Zipes DP, Libby P, Bonow RO, Mann DL, Tomaselli GF, editors. Braunwald’s Heart Disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine. 12th ed. Philadelphia: Elsevier; 2021

  4. Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, et al. Diretriz Brasileira de Valvopatias – SBC 2020. Arq Bras Cardiol. 2020;115(4):720–775. doi:10.36660/abc.20201047

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Quais são as complicações à distância da endocardite infecciosa, como diagnosticar e tratar?
A Dra. Daniella Nazzetta esclarece essas questões no décimo episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 9: Profilaxia

Dra Mariana Pezzute Lopes

Profilaxia de Endocardite Infecciosa: Qual a Importância e o que dizem as Diretrizes

A endocardite infecciosa (EI) é uma complicação grave e muitas vezes fatal. A profilaxia é essencial para reduzir o risco dessa infecção em pacientes suscetíveis, especialmente durante procedimentos que podem causar bacteremia significativa.

Os estreptococos, que fazem parte da flora normal da orofaringe e do trato gastrointestinal, são responsáveis por pelo menos 50% dos casos de EI adquiridas na comunidade. A bacteremia provocada por estreptococos do grupo viridans ocorre em até 61% dos pacientes após extrações dentárias e cirurgias periodontais. Além disso, atividades rotineiras, como escovação de dentes e uso de fio dental, estão associadas a uma significativa carga de bacteremia espontânea, sendo de fundamental importância o foco também na prevenção não farmacológica da EI, incluindo consultas odontológicas regulares (3 a 4 vezes ao ano) e a manutenção de uma boa saúde bucal. Com relação à arte corporal, procedimentos como tatuagens e piercings, que são também grandes fontes de bacteremia, são contraindicados por todas as diretrizes, havendo diversos relatos na literatura de casos de EI com desfecho fatal.  

A importância da profilaxia não medicamentosa para a EI é senso comum tanto na diretriz brasileira de valvopatias quanto nas diretrizes internacionais. Quando falamos de profilaxia farmacológica, o assunto é um pouco mais controverso e polêmico. A literatura carece de estudos randomizados e controlados que demonstrem a eficácia da profilaxia medicamentosa para EI. Sendo assim, em 2008, o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE), instituição britânica, propôs que não fosse realizada profilaxia para EI em nenhuma ocasião, devido à ausência de evidências robustas do benefício dessa prática rotineira. Como consequência observou-se uma diminuição da prescrição da profilaxia antibiótica antes de tratamentos dentários seguido de um aumento expressivo do número de casos de EI ao longo dos próximos anos. Dayer e colaboradores, em publicação de 2015, revelou essa tendência preocupante. Como podemos observar, a partir de março de 2008, o número de casos de endocardite infecciosa aumentou significativamente, superando a tendência histórica projetada, com um acréscimo de 35 casos a mais por mês do que o esperado, sendo este aumento significativo tanto para populações de alto risco para EI quanto para pacientes de baixo risco (Figura 1). Trata-se de um estudo bastante importante para a nossa prática clínica e que foi considerado na elaboração das recomendações da diretriz brasileira de valvopatias, sobretudo por trazer uma evidência observacional de que abolir totalmente a profilaxia antibiótica parece levar ao aumento da incidência de EI na população geral.

 

 

FIGURA 1: Dayer MJ, et al. Incidence of infective endocarditis in England, 2000-13: a secular trend, interrupted time-series analysis. Lancet. 2015 Mar 28;385(9974):1219-28. 

 

Como já esperado, diante das controversas e falta de evidências robustas na literatura, as diretrizes brasileira, europeia e americana abordam a profilaxia farmacológica para EI de forma diferente:

  • Diretriz Brasileira (2020): Reforça a necessidade de profilaxia em pacientes com valvopatias moderadas a graves e portadores de próteses valvares (mecânicas, biológicas ou endopróteses), especialmente em procedimentos odontológicos com alta probabilidade de bacteremia (classe I). A amoxicilina é a droga de escolha, com alternativas como clindamicina, claritromicina e azitromicina para alérgicos à penicilina. Para pacientes de MUITO ALTO RISCO*, a profilaxia antibiótica com gentamicina e ampicilina endovenosas antes de procedimentos não odontológicos é sugerida com classe de recomendação IIa.
  • Diretriz Europeia (2023): Recomenda como classe I profilaxia em procedimentos dentários APENAS para pacientes de MUITO ALTO RISCO*, com uma recomendação menos forte (IIb) quando submetidos a outros tipos de procedimentos (geniturinários, gastrointestinais e trato respiratório).
  • Diretriz Americana (2020): Considera razoável a profilaxia antibiótica antes de procedimentos dentários em pacientes de MUITO ALTO RISCO* (classe IIa) e NÃO recomenda a profilaxia para procedimentos que não envolvam a mucosa oral (classe III), independentemente do risco do paciente.

 

*São considerados PACIENTES DE MUITO ALTO RISCO, ou seja, risco elevado para EI grave: 

  • Portadores de prótese valvar cardíaca;
  • História de EI prévia;
  • Portadores de cardiopatia congênita não reparada ou corrigida parcialmente ou corrigida com material protético;
  • Transplantado cardíaco com valvopatia residual. 

Assim, vemos que no Brasil somos mais abrangentes na recomendação de profilaxia de EI, em partes motivados pela participação de uma grande parcela de população de baixa renda, que carece de atenção à saúde bucal, que seria o primeiro passo fundamental na prevenção da doença. 

 

Referências Bibliográficas 

  1. Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, Santis A, et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias – 2020. Arq. Bras. Cardiol. 2020;115(4):720-75.
  2. Dayer MJ, Jones S, Prendergast B, Baddour LM, Lockhart PB, Thornhill MH. Incidence of infective endocarditis in England, 2000-13: a secular trend, interrupted time-series analysis. Lancet. 2015 Mar 28;385(9974):1219-28.
  3. Delgado V et al. ESC Scientific Document Group , 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis: Developed by the task force on the management of endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) Endorsed by the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS) and the European Association of Nuclear Medicine (EANM)European Heart Journal, Volume 44, Issue 39, 14 October 2023, Pages 3948–4042.
  4. Otto CM, Nishimura RA, Bonow RO, Carabello BA, Erwin JP 3rd, Gentile F, Jneid H, Krieger EV, Mack M, McLeod C, O’Gara PT, Rigolin VH, Sundt TM 3rd, Thompson A, Toly C. 2020 ACC/AHA Guideline for the Management of Patients With Valvular Heart Disease: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2021 Feb 2;143(5):e72-e227. 

 

 

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Qual é a importância e o que dizem as diretrizes sobre profilaxia de endocardite infecciosa?

No 9º episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa, Dra. Mariana Pezzute Lopes esclarece essas dúvidas e explica os detalhes das diretrizes brasileira, americana e europeia.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 8: quando indicar cirurgia?

Dr Renato Nemoto

A despeito do tratamento clínico, fundamental no tratamento de endocardite, existem situações nas quais o tratamento cirúrgico é necessário para resolução do quadro, redução de morbidade e mortalidade.

As indicações são divididas em 3 pilares:

– Insuficiência cardíaca

– Infecção não controlada

– Prevenção de embolização

Além disso, devemos decidir em qual momento o procedimento cirúrgico deve ser realizado. A última diretriz europeia divide em:

– Cirurgia de emergência – realizada em até 24h

– Cirurgia urgente – dentro de 3 a 5 dias (pode ser estendida de acordo com o caso)

– Cirurgia não urgente – durante a mesma internação hospitalar

Devido potencial gravidade dos quadros de endocardite infecciosa, não infrequente o risco cirúrgico é desafiador. Além disso, a abordagem cirúrgica precoce possui maior risco de complicações periprocedimento e infecção da prótese valvar, sendo preferível, quando possível, aguardar o tratamento com antibióticos para estabilização da infecção. Dessa forma, para definição da indicação, momento ideal e quais medidas devem ser realizadas no periprocedimento, sempre que possível, o caso deve ser discutido com o time de endocardite (Endocarditis Team).

Insuficiência Cardíaca (IC):

A insuficiência cardíaca é a principal causa de necessidade de abordagem cirúrgica. A perfuração e ruptura dos folhetos e ruptura da corda mitral causam regurgitação valvar potencialmente grave ou agravamento da lesão pré-existente e subsequente IC aguda. Outras causas menos comuns de IC incluem fístulas intracardíacas, interferência da vegetação na mobilidade dos folhetos ou infarto do miocárdio devido à embolização para as artérias coronárias.

Nos casos de choque cardiogênico e edema agudo pulmonar, a cirurgia deve ser de emergência (Classe I). Nos casos de IC classe II-III da NYHA e valvopatia anatomicamente importante ou sinais de comprometimento hemodinâmico (pressão diastólica final ventricular esquerda elevada, pressão atrial esquerda elevada ou hipertensão pulmonar moderada ou grave), a cirurgia deve ser de urgência. Em pacientes sem comprometimento hemodinâmico, a cirurgia pode ser considerada como não urgente.

Infecção não controlada:

Segundo as diretrizes europeia, infecção não controlada ocorre quando:

– Há infecção persistente ou sepse apesar da terapia antibiótica: arbitrariamente definida se febre e culturas positivas após 7 dias de tratamento apropriado (Classe IIa). Foi demonstrado que culturas persistentes por mais de 48-72 horas são um fator de risco independente para mortalidade hospitalar

– Sinais de infecção local que não respondem à antibioticoterapia: aumento do tamanho da vegetação, formação de abscessos, pseudoaneurismas e/ou fístulas, novo bloqueio atrioventricular. Sinais clínicos que podem auxiliar na suspeita incluem febre persistente, dor torácica, novo sopro cardíaco, embolia recorrente ou sinais de IC. O diagnóstico deve ser confirmado por exame de imagem (Classe I).

– Infecção por organismos resistentes ou muito virulentos: fungos, bactérias multirresistentes (por exemplo, MRSA ou enterococos resistentes à vancomicina) e, em casos raros, bactérias Gram-negativas não HACEK, de acordo com a condição hemodinâmica (Classe I). O Staphylococcus aureus também é motivo de preocupação devido à sua rápida progressão e morbidade principalmente em pacientes com prótese valvar (Classe IIa). A identificação desses microorganismos, junto com o risco cirúrgico, deve ser discutida com a equipe para avaliar necessidade de abordagem.

Todas essas indicações devem resultar em cirurgia de urgência, sendo a indicação isoladamente por germe multirresistente ou fungo, passível de abordagem não urgente.

Prevenção de eventos embólicos:

Os eventos embólicos podem ser clinicamente silenciosos em até 50% dos pacientes com EI, sendo o risco maior no dia seguinte ao início da antibioticoterapia (embora seja 10 a 20 vezes maior sem tratamento), em comparação com 2 semanas após. Dessa forma, os benefícios da cirurgia para prevenir a embolia são maiores durante as fases iniciais da terapia.

O tamanho e a mobilidade das vegetações são os preditores independentes mais importantes. O tamanho da vegetação foi um marcador de piores resultados apenas quando associado a outras indicações cirúrgicas (IC ou infecção não controlada). Um ponto de atenção é a endocardite estafilocócica, que apresenta maior risco de evoluir com embolizações.

Assim, as indicações das últimas diretrizes europeia são (todas com recomendação de urgência):

– Vegetação ≥ 10mm após evento(s) embólico(s) a despeito de antibioticoterapia adequada (Classe I)

– Vegetação ≥ 10mm quando outras indicações para cirurgia também presentes (Classe I)

– Vegetação ≥ 10mm sem lesão valvar importante ou embolização, mas baixo risco cirúrgico (Classe IIb)

Referências bibliográficas:

Delgado V, Ajmone Marsan N, de Waha S, Bonaros N, Brida M, Burri H, Caselli S, Doenst T, Ederhy S, Erba PA, Foldager D, Fosbøl EL, Kovac J, Mestres CA, Miller OI, Miro JM, Pazdernik M, Pizzi MN, Quintana E, Rasmussen TB, Ristić AD, Rodés-Cabau J, Sionis A, Zühlke LJ, Borger MA; ESC Scientific Document Group. 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis. in: Eur Heart J. 2024 Jan 1;45(1):56. doi: 10.1093/eurheartj/ehad776. PMID: 37622656.

 

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Quando devemos indicar a cirurgia para o tratamento da endocardite infecciosa? No 8º episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa, Dr. Renato Nemoto esclarece essa dúvida e explica quais são as diretrizes para essa tomada de decisão.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 7: quando iniciar o tratamento com antibióticos?

Dra. Fernanda Tessari

O tratamento da endocardite infecciosa deve ser iniciado prontamente, aguardando-se apenas o tempo para adequada coleta de hemoculturas. A escolha inicial dos antibióticos dependerá de alguns fatores: 1) uso prévio de antibióticos; 2) endocardite de válvula nativa ou prótese (e o tempo de implantação da mesma); 3) epidemiologia do local onde foi contraída a infecção (comunidade, hospitalar, instituição de cuidado à saúde). Assim, seguimos as seguintes orientações:

  1. Endocardite de válvula nativa ou prótese valvar implantada há mais de 12 meses
    1. Cobertura para estafilococo, estreptococo e enterococcus;
    2. Recomendação: ampicilina + ceftriaxone ou oxacilina + gentamicina 
    3. Se alergia a penicilinas: cefazolina ou vancomicina + gentamicina
  2.  Endocardite de prótese implantada há menos de 12 meses ou endocardite adquirida em ambiente hospitalar ou insituição de cuidado à saúde
    1. Cobertura para estafilococo resistente à meticilina, enterococcus e patógenos Gram-negativos não-HACEK
    2. Recomendação: vancomicina ou daptomicina + gentamicina + rifampicina*

*A rifampicina deve ser iniciada após hemoculturas negativas ou após 3-5 dias do início do tratamento a fim de evitar resistência bacteriana, especialmente de Estafilococos. 

 

Após a identificação do agente etiológico, o esquema deve ser alterado de acordo com o resultado da cultura e antibiograma (as principais indicações estão sumarizadas na tabela 1). Entretanto, em parte considerável dos casos, temos hemoculturas negativas, o que frequentemente é devido ao uso prévio de antibióticos, devendo ser considerada a suspensão dos mesmos para nova coleta de culturas em pacientes estáveis (endocardite subaguda). Em outros casos, as hemoculturas podem ser negativas por tratar-se de infecção por germes que não crescem em meios convencionais de cultura, como Coxiella burnetii, Bartonella spp. e Brucella spp., ou mesmo fungos, sendo necessária a realização de testes sorológicos, uso de meios de culturas especiais ou até mesmo outros testes microbiológicos para a detecção do agente etiológico. Ainda assim, em alguns casos não é possível isolar o microorganismo responsável pela endocardite, devendo ser mantido o tratamento empírico. 

De maneira geral, deve-se manter o tratamento por 4 a 6 semanas se válvula nativa e por pelo menos 6 semanas se prótese valvar, contadas a partir da primeira hemocultura negativa. Em casos cirúrgicos, caso a cultura da válvula seja positiva, um novo ciclo deve ser iniciado a partir da data da cirurgia.

 

Tabela 1.

Agente etiológico Antibióticos indicados Duração típica
Estreptococo oral, Streptococcus viridans e Streptococcus gallolyticus (sensíveis à penicilina) Penicilina G, amoxicilina ou Ceftriaxona ± Gentamicina 4 ou 6 semanas (nativa ou prótese; monoterapia); 2 semanas (com gentamicina, apenas se válvula nativa)
Estafilococos — válvula nativa – MSSA: Oxacilina ou cefazolina ± Gentamicina; 

– MRSA: Vancomicina

4-6 semanas
Estafilococos — prótese valvar – MSSA: Oxacilina ou Cefazolina + Rifampicina + Gentamicina (2 semanas)

– MRSE: Vancomicina + Rifampicina + Gentamicina (2 semanas)

≥6 semanas
Enterococcus faecalis/faecium Ampicilina + Gentamicina (2 semanas) ou Ampicilina + Ceftriaxona 4-6 semanas
HACEK Ceftriaxona (ou Fluoroquinolona) 4 semanas (nativa); 6 semanas (prótese)
Bacilos Gram-negativos não HACEK Beta-lactâmico de amplo espectro + Aminoglicosídeo ou Fluoroquinolona ≥6 semanas
Fúngica Equinocandina ou Anfotericina B lipossomal ≥6 semanas, frequentemente terapia supressiva crônica (fluconazol ou voriconazol)

MSSA: estafilococo sensível a meticilina; MRSA: estafilococo resistente à meticilina 

 

E quanto ao tratamento ambulatorial?

Considerando que o tratamento da endocardite infeccioso é bastante prolongado, podendo ser necessárias até 6 semanas de antibioticoterapia, discute-se a factibilidade de alternativas de tratamento domiciliar visando tanto a redução de custos hospitalares, quanto a possibilidade de alta mais precoce e consequente redução de outras complicações associadas à internação.

Assim, surge a possibilidade de antibioticoterapia parenteral ambulatorial, em que inicia-se a administração de antibióticos intravenosos durante a internação, em geral por pelo menos 2 semanas, e o término do tratamento é realizado após alta hospitalar com apoio de uma equipe multidisciplinar. Entretanto, para que um paciente seja considerado para esta estratégia, vários pontos devem ser levados em consideração:

  • O paciente deve apresentar função cognitiva adequada, saúde mental preservada, rede de apoio social estruturada e viver a uma distância aceitável do hospital com possibilidade de deslocamento e contato telefônico;
  • Devem ser excluídas complicações da endocardite infecciosa, como eventos embólicos, insuficiência cardíaca, abscessos ou aneurismas;
  • O paciente não deve apresentar outras comorbidades que necessitem de hospitalização, como falências orgânicas, focos extra-cardíacos de infecção, hipertensão não controlada, envolvimento neurológico, etc.;
  • Deve apresentar acesso intravenoso estável e sinais de boa resposta ao tratamento, como hemoculturas negativas, ausência de febre, queda de marcadores inflamatórios (contagem de leucócitos, PCR), função renal e hepática estáveis e ausência de coagulopatia;
  • O eletrocardiograma não pode apresentar bloqueios atrioventriculares de 2º ou 3º grau ou outras arritmias e o ecocardiograma deve demonstrar redução da vegetação, com diâmetros abaixo de 10 mm e ausência de complicações paravalvares. 

O paciente deve ser monitorizado com avaliação clínica, laboratorial, eletro e ecocardiográfica regularmente e a qualquer sinal de complicação ou resposta inadequada ao tratamento, deve ser novamente revertido para o tratamento hospitalar.

Outro ponto de discussão, e ainda mais polêmico, diz respeito ao uso de antibioticoterapia oral para o tratamento da endocardite infecciosa ambulatorialmente. Em 2018 foi realizado o estudo Partial Oral versus Intravenous Antibiotic Treatment of Endocarditis (POET), que randomizou 400 pacientes adultos com endocardite do lado esquerdo do coração e hemoculturas positivas para Streptococcus, Enterococcus faecalis, Staphylococcus aureus ou Staphylococcus coagulase-negativo. Todos receberam ao menos 10 dias de antibioticoterapia intravenosa e metade deles completaram o tratamento com regime oral ambulatorialmente.  Todos os pacientes apresentavam-se clinicamente estáveis, sem evidências de complicações clínicas e ao ecocardiograma transesofágico, e com resposta satisfatória ao tratamento inicial. O estudo demonstrou que o tratamento parcialmente oral foi não inferior em termos de mortalidade em relação ao tratamento intravenoso contínuo. 

Entretanto, o estudo apresenta várias limitações, como a inclusão apenas de 4 tipos de bactérias, a ausência de resistência bacteriana, mínima representabilidade de usuários de drogas intravenosas e ausência de endocardite do lado direito do coração. Além disso, caso indicada, a cirurgia cardíaca deve ocorrer dentro das primeiras 2 semanas de tratamento hospitalar, assim como a drenagem de abscessos e remoção de dispositivos intracardíacos infectados. Assim, a decisão pela transição para o tratamento oral deve levar em consideração as particularidades de cada paciente, incluindo o risco de complicações, efeitos adversos das medicações, risco de resistência microbiana e contexto socioeconômico, de modo a restringir tal estratégia apenas a casos minuciosamente selecionados.

 

Referências bibliográficas

Delgado V, Ajmone Marsan N, de Waha S, et al. 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis [published correction appears in Eur Heart J. 2023 Dec 1;44(45):4780. doi: 10.1093/eurheartj/ehad625.] [published correction appears in Eur Heart J. 2024 Jan 1;45(1):56. doi: 10.1093/eurheartj/ehad776.] [published correction appears in Eur Heart J. 2025 Mar 13;46(11):1082. doi: 10.1093/eurheartj/ehae877.]. Eur Heart J. 2023;44(39):3948-4042. doi:10.1093/eurheartj/ehad193

Pericàs, JM, Llopis, J, González-Ramallo, et al. Outpatient Parenteral Antibiotic Treatment (OPAT) for Infective Endocarditis: a Prospective Cohort Study From the GAMES Cohort. Clinical Infectious Diseases. doi:10.1093/cid/ciz030.

Iversen, K, Ihlemann, N, Gill, Su, et al. Partial Oral versus Intravenous Antibiotic Treatment of Endocarditis. New England Journal of Medicine. doi:10.1056/nejmoa1808312.

 

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Em que momento devemos iniciar e quais são os esquemas de tratamento com antibiótico da endocardite infecciosa? Há evidências para o tratamento ambulatorial? No 7º episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa, a Dra. Fernanda Tessari explica como é o manejo do tratamento da doença com antibióticos.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 6: atualização dos critérios diagnósticos modificados de Duke

Dr. Maicon Felipe Ribeiro da Cruz

Apesar dos avanços da medicina, a endocardite infecciosa (EI) continua sendo uma patologia com diagnóstico frequentemente desafiador e associada a alta taxa de mortalidade. Os critérios originais de Duke foram inicialmente desenvolvidos em 1994 e modificados em 2000; no entanto, fatores como microbiologia, epidemiologia, diagnóstico e tratamento evoluíram significativamente nas últimas três décadas, tornando imprescindível a atualização desses critérios.

Os novos Critérios de Duke (2023) propõem mudanças substanciais, incluindo novos métodos diagnósticos microbiológicos, exames de imagem e a inclusão da inspeção intraoperatória como novo Critério Maior.

Na avaliação clínica inicial de pacientes com quadro de febre sem foco infeccioso claro, especialmente em valvulopatas, deve-se considerar o diagnóstico de EI como possível. O fluxograma de atendimento deve contemplar uma abordagem propedêutica adequada, com o objetivo de confirmar esse diagnóstico, sem, contudo, retardar de forma significativa o início da terapia antimicrobiana, que pode ser iniciada empiricamente.

O diagnóstico definitivo de EI é estabelecido quando são preenchidos dois critérios maiores; ou um critério maior associado a três menores; ou ainda, cinco critérios menores. O diagnóstico pode ser rejeitado se houver uma hipótese diagnóstica alternativa bem estabelecida que explique os sinais e sintomas, ou se o paciente apresentar rápida resolução da infecção.

As hemoculturas continuam sendo fundamentais para a identificação do agente etiológico e o direcionamento do tratamento. Microrganismos típicos isolados em dois ou mais conjuntos de hemoculturas configuram um Critério Maior. Já microrganismos atípicos devem ser isolados em três ou mais hemoculturas separadas para serem considerados como Critério Maior. Ressalta-se que os requisitos formais quanto ao tempo de coleta e punções venosas distintas foram removidos, embora a coleta em sítios diferentes continue fortemente recomendada, quando possível.

Com a evolução do conhecimento sobre a microbiota, a lista de microrganismos típicos foi expandida. Além dos agentes tradicionalmente contemplados nos critérios anteriores, consideram-se agora como típicos: Staphylococcus lugdunensis; todas espécies de estreptococos (exceto S. pneumoniae e S. pyogenes); Granulicatella spp; Abiotrophia spp; e Gemella spp. Adicionalmente, patógenos que só são considerados típicos na presença de material protético intracardíaco passaram a incluir: Staphylococcus coagulase-negativa; Corynebacterium striatum; C. jeikeium; Serratia marcescens; Pseudomonas aeruginosa; Cutibacterium acnes; micobactérias não tuberculosas (especialmente M. chimaerae) e Candida spp.

Outros testes microbiológicos que agora podem ser considerados como Critério Maior, especialmente nos casos de EI com hemoculturas negativas, incluem:

  • PCR ou sequenciamento por amplicon/metagenômico para Coxiella burnetii, Bartonella spp ou Tropheryma whipplei no sangue;
  • Imunofluorescência indireta com título ≥1:800 para anticorpos IgG contra Bartonella henselae ou B. quintana.

Essas técnicas apresentam como vantagens a rapidez nos resultados (24–48 horas), mas enfrentam limitações como alto custo e baixa disponibilidade na maioria dos centros brasileiros.

A Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) reforça a importância de outras modalidades de imagem como Critérios Maiores, como a tomografia computadorizada para avaliação de lesões paravalvares e a captação no PET/CT em biopróteses implantadas há mais de três meses. O PET/CT é especialmente útil quando a ecocardiografia é inconclusiva. Em casos de cirurgia recente (menos de três meses), essa modalidade ainda é considerada Critério Menor.

Em relação às atualizações nos critérios menores, destaca-se como fator predisponente um histórico prévio de EI. No campo dos fenômenos vasculares, passam a ser considerados o abscesso cerebral e o abscesso esplênico. A glomerulonefrite mediada por imunocomplexos foi claramente definida nesta revisão, facilitando sua inclusão como critério menor, desde que atenda aos seguintes critérios:

  • Insuficiência renal aguda inexplicada ou piora da função renal, associada a pelo menos dois dos seguintes:
  • Hematúria;
  • Proteinúria;
  • Presença de cilindros urinários;
  • Alterações sorológicas (hipocomplementemia, crioglobulinemia e/ou imunocomplexos circulantes);
  • Biópsia renal compatível.

O novo conjunto de critérios apresenta limitações que deverão ser reavaliadas futuramente. Entre elas, destaca-se a exigência de três hemoculturas positivas para patógenos não típicos, algo nem sempre factível na prática clínica, já que essa quantidade de coletas geralmente só é realizada quando há suspeita explícita de EI. Além disso, diversas técnicas recentemente incorporadas, como o sequenciamento metagenômico e exames de imagem avançados, ainda não estão disponíveis em muitos centros de menor porte.

É imperioso destacar que, diante do avanço do conhecimento médico, a atualização dos critérios modificados era fundamental para que estes continuassem refletindo a prática clínica contemporânea.

Maicon Felipe Ribeiro da Cruz

Referências:

1 – The 2023 Duke-International Society for Cardiovascular Infectious Diseases Criteria for Infective Endocarditis: Updating the Modified Duke Criteria. Clinical Infectious Diseases. 2023, Aug 22;77(4):518-526.

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Os novos critérios de Duke de endocardite infecciosa, atualizados em 2023, propõem mudanças nos métodos diagnósticos microbiológicos, exames de imagem e a inclusão da inspeção intraoperatória como critério maior.

Dr. Vitor Rosa explica o assunto no sexto episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 5: novos métodos de imagem

Dra. Renata Müller

O avanço dos métodos de imagem tem desempenhado um papel crucial no diagnóstico e manejo da endocardite infecciosa (EI), conforme destacado pelas Diretrizes ESC 2023 para o manejo dessa condição. Tradicionalmente, o diagnóstico dependia da combinação de microbiologia e ecocardiografia, mas atualmente, novos exames de imagem, como a tomografia computadorizada (TC) e a PET-CT, estão sendo incorporados para melhorar a precisão diagnóstica. Esses métodos agora fazem parte dos critérios maiores para o diagnóstico da endocardite infecciosa.

A tomografia computadorizada (TC) se destaca por aumentar a sensibilidade diagnóstica, especialmente em casos com próteses valvares, onde o ecocardiograma pode falhar devido à presença de artefatos. A sensibilidade da TC para vegetações chega a 96%, enquanto sua especificidade é de 97% quando comparada aos achados cirúrgicos. Além disso, a TC é recomendada como exame complementar de escolha quando o ecocardiograma transtorácico ou transesofágico apresentam resultados inconclusivos e a suspeição clínica permanece. É particularmente útil para detectar complicações perivalvares, como abscessos, pseudoaneurismas, fístulas e deiscências, com sensibilidade para essas complicações perivalvares de até 100%.

O PET-CT com FDG (fluordesoxiglicose) tem como as duas principais indicações a detecção de infecções intracardíacas e sistêmicas assintomáticas. É um método bastante sensível quando se trata de prótese valvar e infecção de loja de marcapasso, porém, perde acurácia quando o assunto é prótese nativa, com sensibilidade girando em torno de 36% neste cenário. O PET-FDG/CT consegue reclassificar até 11% dos casos “possíveis” de EI em “definitivos”, auxiliando em modificações no tratamento em cerca de 31% dos pacientes.

No entanto, existe o risco de falsos positivos em pacientes submetidos a cirurgias recentes (menos de 3 meses) ou com materiais específicos, como a prótese de Dacron. Por essa razão, o PET-CT deve ser realizado idealmente três meses após a intervenção cirúrgica para evitar interpretações incorretas. Vale ressaltar que um PET-FDG/CT positivo com menos de 3 meses da cirurgia cardíaca, agora pontua como critério menor para o diagnóstico de EI na Diretriz da ESC 2023.

A ressonância magnética (RM), apesar de apresentar limitações devido à baixa resolução espacial e interferência por artefatos de próteses, tem grande utilidade na avaliação de complicações neurológicas e lesões vertebrais associadas à endocardite. Cerca de 60-80% dos pacientes com endocardite apresentam algum grau de lesão neurológica, e a RM se mostrou superior à TC na detecção dessas complicações, contribuindo para a reclassificação diagnóstica de até 25% dos casos.

Parece haver um consenso neste momento de que a estratégia mais adequada é a combinação de métodos. O ecocardiograma transtorácico continua sendo o exame inicial, mas sua combinação com outras modalidades de imagem, como a TC e o PET-CT, é essencial para confirmar diagnósticos complexos, planejar intervenções cirúrgicas e monitorar complicações em pacientes de alto risco. O uso de múltiplas técnicas permite uma avaliação mais abrangente da extensão da doença e das complicações sistêmicas.

Assim, o uso de novas tecnologias de imagem está transformando o diagnóstico e manejo da endocardite infecciosa, oferecendo maior precisão e sensibilidade, especialmente em casos complexos ou com limitações em exames convencionais. A aplicação correta dessas técnicas, conforme destacado pela Diretriz da ESC de 2023, é essencial para garantir um tratamento eficaz e reduzir a morbidade e mortalidade associadas à doença.


Referências Bibliográficas:

  1. Delgado V, et al; ESC Scientific Document Group. 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis. Eur Heart J. 2023 Oct 14;44(39):3948-4042.

  2. Saeedan MB, et al. Role of Cardiac CT in Infective Endocarditis: Current Evidence, Opportunities, and Challenges. Radiol Cardiothorac Imaging. 2021 Feb 18;3(1).

  3. Ten Hove D, Slart RHJA, Sinha B, Glaudemans AWJM, Budde RPJ. 18F-FDG PET/CT in Infective Endocarditis: Indications and Approaches for Standardization. Curr Cardiol Rep. 2021 Aug 7;23(9):130.

  4. de Camargo RA, et al. The Role of 18F-Fluorodeoxyglucose Positron Emission Tomography/Computed Tomography in the Diagnosis of Left-sided Endocarditis: Native vs Prosthetic Valves Endocarditis. Clin Infect Dis. 2020 Feb 3;70(4):583-594.

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Como podemos utilizar os novos métodos de imagem para diagnóstico e pesquisa de complicações da endocardite infecciosa? A Dra. Renata Müller explica sobre o assunto no quinto episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

 

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 4: ecocardiograma transtorácico e transesofágico

Dra. Daniella Nazzetta

O ecocardiograma é um dos exames mais importantes no manejo de pacientes com endocardite infecciosa (EI). É o primeiro exame de imagem solicitado frente à suspeita da doença e deve ser realizado o mais brevemente possível. O exame é contemplado nos critérios de Duke, e, quando positivo, conta como um critério maior de envolvimento endocárdico. Além de confirmar o diagnóstico da doença, o ecocardiograma pode fornecer informações sobre características e complicações da EI, como tamanho da vegetação, presença de abscesso perivalvar, pseudoaneurisma, deiscência de prótese valvar, fístula e perfuração de folheto.

Inicialmente, um ecocardiograma transtorácico (EcoTT) deve ser realizado no paciente com suspeita da doença. Porém, o exame possui baixa sensibilidade com uma boa especificidade, quando comparado com o ecocardiograma transesofágico (EcoTE), o qual é útil nos pacientes que possuem uma janela acústica limitada, na suspeita de complicações perivalvares, vegetações pequenas, endocardite protética e vegetações associadas a dispositivos eletrônicos implantáveis cardíacos. O EcoTE está fortemente recomendado em pacientes com EcoTT inconclusivo, ou negativo com alta suspeita de EI, ou mesmo quando o exame é positivo e é necessário documentar complicações locais (ex: abscesso perivalvar).

Deve-se considerar repetir o exame de ecocardiograma durante a EI não complicada para avaliar complicações assintomáticas e o tamanho das vegetações. O momento e a modalidade do ecocardiograma a ser repetido dependem dos achados do primeiro exame, o tipo de microrganismo identificado e da resposta à antibioticoterapia. Mas, no geral, deve-se repetir o exame de 5 a 7 dias após um ecocardiograma inicial normal ou inconclusivo, caso a suspeita da infecção seja alta, e em paciente com infecção diagnosticada, quando existe alto risco de complicações (ex: germes agressivos ou pacientes com próteses valvares).

O ecocardiograma pode apresentar resultado falso-positivo em até 15% dos casos, principalmente em pacientes com lesões valvares graves, como prolapso da valva mitral, alterações degenerativas e pacientes com próteses valvares. O diagnóstico em pacientes com valvas protéticas pode ser mais desafiador, tendo o ecocardiograma, tanto transtorácico quanto o transesofágico, uma sensibilidade e especificidade menores quando comparados com pacientes com valvas nativas. Em algumas situações, pode ser difícil diferenciar vegetações de trombos, prolapsos de cúspide, principalmente quando há corda rota, tumores cardíacos, alterações mixomatosas ou vegetações não infecciosas. Nos casos duvidosos, podemos lançar mão de outros métodos de imagem como a tomografia cardíaca.

 

Tabela 1. Recomendações do papel do ecocardiograma na EI segundo as diretrizes europeias (ESC)

 

Recomendação Classe Nível de evidência
  • Diagnóstico
EcoTT é recomendado como a modalidade de imagem de primeira linha na suspeita de EI I B
EcoTE é recomendado para todos os pacientes com suspeita clínica de EI e um EcoTT negativo ou não diagnóstico I B
EcoTE é recomendado para pacientes com suspeita clínica de EI quando há uma válvula cardíaca protética ou um dispositivo intracardíaco I B
Repetir o EcoTT e/ou EcoTE dentro de 5 a 7 dias é recomendado em casos de exame inicialmente negativo ou inconclusivo, quando a suspeita clínica de EI permanece alta I C
EcoTE é recomendado para pacientes com suspeita de EI, mesmo com EcoTT positivo (exceto na EI isolada do lado direito em válvula nativa, com exame de EcoTT de boa qualidade e achados ecocardiográficos inequívocos) I C
A realização de ecocardiograma deve ser considerada em casos de bacteremia por S. aureus, E. faecalis e algumas espécies de Streptococcus IIa B
  • Acompanhamento do tratamento medicamentoso
Repetir o EcoTT e/ou EcoTE é recomendado na suspeita de uma nova complicação da EI (novo sopro, embolia, febre e bacteremia persistentes, IC, abscesso, BAV) I B
EcoTE é recomendado quando o paciente está estável, antes da transição da terapia antibiótica intravenosa para oral I B
Durante o acompanhamento da EI não complicada, deve-se considerar novo EcoTT e/ou EcoTE para detectar novas complicações silenciosas. O melhor momento depende dos achados iniciais, do tipo de microrganismo e da resposta inicial à terapia IIa B
  • Ecocardiograma intraoperatório
O ecocardiograma intraoperatório é recomendado em todos os casos de EI que necessitam de cirurgia I C
  • Acompanhamento após o término do tratamento
EcoTT e/ou EcoTE são recomendados ao final da terapia antibiótica para avaliação da morfologia e função cardíaca e das válvulas em pacientes com EI que não passaram por cirurgia I C

 

Bibliografia:

  1. Cordeiro Fernandes, J. R., Pezzute Lopes, M., Focaccia Siciliano, R., & Tavares Veronese, E. (2022). Endocardite infecciosa. Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, 32(2), 183-194.

 

  1. Coisne, A., Lancellotti, P., Habib, G., Garbi, M., Dahl, J. S., Barbanti, M., Vannan, M. A., Vassiliou, V. S., Dudek, D., Chioncel, O., Waltenberger, J. L., Johnson, V. L., De Paulis, R., Citro, R., Pibarot, P., & EuroValve Consortium (2023). ACC/AHA and ESC/EACTS Guidelines for the Management of Valvular Heart Diseases: JACC Guideline Comparison. Journal of the American College of Cardiology82(8), 721–734. https://doi.org/10.1016/j.jacc.2023.05.061.

 

  1. Delgado, V., Ajmone Marsan, N., de Waha, S., Bonaros, N., Brida, M., Burri, H., Caselli, S., Doenst, T., Ederhy, S., Erba, P. A., Foldager, D., Fosbøl, E. L., Kovac, J., Mestres, C. A., Miller, O. I., Miro, J. M., Pazdernik, M., Pizzi, M. N., Quintana, E., Rasmussen, T. B., … ESC Scientific Document Group (2023). 2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis. European heart journal44(39), 3948–4042. https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehad193

 

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Quando realizar e quais achados esperar no ecocardiograma transtorácico e transesofágico para detecção e acompanhamento da endocardite infecciosa?

A Dra. Daniella Nazzetta explica sobre o assunto no quarto episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa.

 

Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa Episódio 3: apresentação clínica e uso de biomarcadores para avaliação diagnóstica e prognóstica

Fernanda Castiglioni Tessari

A suspeição de endocardite infecciosa (EI) se dá a partir a interpretação conjunta da história clínica, achados do exame físico, exames laboratoriais e de imagem. A apresentação clínica muito variável torna o diagnóstico desafiador, sendo que de maneira geral devemos sempre considerar a possibilidade de EI em pacientes com febre de origem indeterminada na presença de fatores de risco, especialmente na presença de hemoculturas positivas para germes típicos, como veremos adiante neste curso. 

A depender do agente etiológico e do status clínico do paciente, a endocardite infecciosa pode apresentar-se de duas formas: aguda e subaguda ou crônica. A forma aguda caracteriza-se por ser uma doença agressiva, de rápida evolução e alta letalidade, cursando com destruição valvar e insuficiência cardíaca aguda. Já a apresentação subaguda ou crônica caracteriza-se por seu curso indolente, com febre baixa e sintomas constitucionais inespecíficos. 

A avaliação clínica inicial inclui a pesquisa de fatores de risco e a realização de um exame físico minucioso buscando sinais característicos da EI e também possíveis portas de entrada para os microorganismos causadores da doença, como má higiene bucal e doenças periodontais, por exemplo. Entretanto, devemos ter em mente que a ausência destes sinais de maneira isolada não exclui o diagnóstico de EI.

Febre é o sintoma mais comum (quase 80% dos casos), e é frequente a presença de sopro cardíaco (mais de 60% dos casos) e de insuficiência cardíaca (cerca de 30%). Eventos embólicos e distúrbios de condução são complicações relativamente frequentes, assim como eventos vasculares e imunológicos classicamente associados à EI.

Fenômenos Vasculares Fenômenos imunológicos
Eventos embólicos arteriais periféricos e viscerais (ex: infarto esplênico) Nódulos de Osler (pequenas elevações dolorosas na face anterior da ponta dos dedos)
Lesões de Janeway (pequenas lesões indolores eritematosas ou hemorrágicas nas palmas das mãos e planta dos pés) Manchas de Roth (manchas retinianas hemorrágicas com centro esbranquiçado)
Hemorragia conjuntival Fator reumatoide positivo
Aneurisma micótico, hemorragia intracraniana Glomerulonefrite

 

Pacientes idosos e imunocomprometidos podem cursar com apresentações atípicas, e alto grau de suspeição deve ser dado aos portadores de dispositivos intracardíacos e próteses valvares.

Dentre os exames laboratoriais, anemia, leucocitose ou leucopenia com presença de células imaturas e provas inflamatórias elevadas, como proteína C reativa, VHS e procalcitonina, estão presentes na maioria dos casos. A pesquisa de marcadores de disfunção orgânica, como aumento de creatinina sérica e bilirrubinas, lactato elevado e plaquetopenia auxilia na avaliação da gravidade e prognóstico da doença. O aumento de BNP ou NT-pro-BNP e troponina, do mesmo modo, associa-se a maior risco de complicações e piores desfechos. Entretanto, ainda não foram encontrados biomarcadores específicos para o diagnóstico da EI, sendo utilizados para avaliação da gravidade e resposta ao tratamento. Neste contexto, PCR e procalcitonina são os principais marcadores utilizados para monitorizar a resposta à antibioticoterapia. Outros biomarcadores vêm sendo propostos para auxiliar no diagnóstico e avaliação prognóstica da EI, como interleucina-6, cistatina C, moléculas de adesão e outras proteínas de fase aguda, porém ainda são alvos de futuros estudos.      

Referências bibliográficas

Delgado, Victoria et al. “2023 ESC Guidelines for the management of endocarditis.” European heart journal vol. 44,39 (2023): 3948-4042. doi:10.1093/eurheartj/ehad193

Snipsøyr, Magnus G et al. “A systematic review of biomarkers in the diagnosis of infective endocarditis.” International journal of cardiology vol. 202 (2016): 564-70. doi:10.1016/j.ijcard.2015.09.028

 

Assista ao video

O diagnóstico de endocardite infecciosa pode ser muito desafiador, já que a doença pode se apresentar de diversas maneiras.

No 3º episódio da série Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre endocardite infecciosa, a Dra. Fernanda Tessari explica quais são essas manifestações clínicas da doença e como o uso de biomarcadores pode auxiliar no diagnóstico e prognóstico