Fundamentos em doenças valvares – tudo o que você precisa saber sobre insuficiência mitral Aula 5: radiografia de tórax e eletrocardiograma
Layara Lipari Vicente
A radiografia de tórax e o eletrocardiograma são exames complementares de grande importância na investigação das valvopatias. Apesar de não fazererm diagnóstico de insuficiência mitral, trazem pistas importantes, principalmente sobre as repercussões desta valvopatia, quando anatomicamente importante. O eletrocardiograma pode ser usado também para a avaliação da presença de arritmias ventriculares e estratificação de risco no caso do prolapso mitral arritmogênico.
Na insuficiência mitral, a falha no fechamento adequado da valva mitral resulta no refluxo de sangue do ventrículo esquerdo para o átrio esquerdo durante a sístole. Este fenômeno desencadeia uma série de alterações fisiopatológicas como a sobrecarga de átrio esquerdo (que aumenta o risco de fibrilação atrial) e sobrecarga de ventrículo esquerdo (por sobrecarga de volume).
Na radiografia de tórax é importante procurar sinais de dilatação do átrio esquerdo como o duplo contorno atrial e o sinal da bailarina (o aumento do átrio esquerdo empurra o brônquio-fonte esquerdo, gerando aumento do ângulo infracarinal). Pode haver, ainda, sinais de congestão, geralmente bilateral, porém, em alguns casos, assimétrica: devido ao eixo anatômico do ventrículo esquerdo e ao grande volume de sangue bombeado na sístole (decorrente também da sobrecarga atrial), o refluxo de sangue através da valva mitral na insuficiência mitral aguda tende a direcionar-se preferencialmente para a direita e para cima (veia pulmonar superior direita – que drena os lobos superior e médio direitos), causando, assim, uma congestão venosa assimétrica (principalmente em campo pulmonar superior direito).
A radiografia de tórax permite também a avaliação etiológica em alguns casos de doença calcífica com a presença de calcificação anular na topografia do anel mitral (MAC – Mitral Annular Calcification). Para os pacientes que já fizeram alguma intervenção valvar, podemos ver sinais ao exame, como fios de sutura do esterno e mesmo o aro da prótese e os clipes usados no reparo mitral percutâneo (TEER – Mitral Transcatheter Edge-to-Edge Repair).
Ao eletrocardiograma, podemos encontrar sinais de sobrecarga de câmaras esquerdas e, em alguns casos, fibrilação atrial. A avaliação inicial do ECG abrange a avaliação de ritmo: em primeiro lugar, procuramos identificar um ritmo sinusal (onda P positiva em D1 e aVF e toda onda p conduz um QRS). Posteriormente, avaliamos o intervalo PR e sinais de sobrecargas de câmaras. Quando a sobrecarga de átrio esquerdo e consequente alteração estrutural leva à distorção do sistema de condução atrial, pode haver evolução para fibrilação atrial: o ritmo deixa de ser sinusal e podemos observar o padrão de ondas f na linha de base e RR irregular.
A sobrecarga de átrio esquerdo pode ser identificada no eletrocardiograma pela presença de uma onda P alargada nas derivações inferiores (II, III e aVF). Além disso, outro sinal clássico é o Sinal de Morris: uma onda P negativa em V1 com duração maior que 40 ms e uma amplitude negativa de pelo menos 1 mm (ou seja, área maior ou igual a 1mm²).
Já para buscar sobrecarga de ventrículo esquerdo, temos diversos critérios e geralmente usamos mais de um para esta avaliação.
- Sokolow-Lyon: Onda S em V1 + R em V5 ou V6 (o que for maior) = positivo quando acima de 40 em jovens e 35 para os demais pacientes.
- Índice de Cornell = R de aVL + S de V3 = positivo quando superior a 20 em mulheres e 28 em homens.
- Peguero-Lo Presti = Maior S em qualquer derivação + S de V4 = positivo quando maior ou igual a 23mm em mulheres e 28mm em homens. O interessante desse critério é que leva em consideração a orientação espacial do coração do paciente, que pode ser um pouco desviada.
- Padrão de strain nas derivações esquerdas = Presença da inversão de onda T com infradesnivelamento do segmento ST.
- Critérios de Romhilt-Estes = positivo na soma de 5 pontos:
– 3 pontos: QRS (>20mm plano frontal e 30mm horizontal); strain na ausência de ação digitálica; e índice de Morris (aumento da duração da onda P maior que 1mm e da amplitude da onda p também superior a 1mm vistos em V1, denota sobrecarga de átrio esquerdo).
– 2 pontos: desvio do eixo elétrico do QRS além de -30º.
– 1 ponto: Tempo de Ativação Ventricular ou deflexão intrinsecoide >40ms (definida como o tempo desde o início do QRS até o pico da onda R); duração QRS (> 90 ms) em V5 e V6; e padrão strain sob ação do digital.
Todos estes critérios se correlacionam com a presença de sobrecarga de ventrículo esquerdo, seja por insuficiência mitral (primária ou secundária) ou outra etiologia.
Além disso, uma etiologia possível da insuficiência mitral é a secundária a infarto agudo do miocárdio. Nesse caso, podemos identificar os sinais de isquemia aguda, como o supradesnivelamento do segmento ST, ou zonas eletricamente inativas referentes a um infarto antigo.
Finalmente, vale a pena ressaltar um tema que vem ganhando cada vez mais atenção, que é o prolapso mitral arritmogênico. O prolapso mitral arritmogênico é uma apresentação de prolapso mitral associada a um risco aumentado de arritmias ventriculares e morte súbita cardíaca. Estudos observacionais recentes sugerem que a morte súbita cardíaca relacionada ao prolapso mitral, devido a arritmias ventriculares sustentadas, pode ocorrer com uma frequência anual estimada de 0,2% a 1,9%. Esta condição é caracterizada por várias alterações, incluindo disjunção do anel mitral, folhetos mixomatosos e redundantes, e fibrose ventricular. No eletrocardiograma, são observadas alterações de repolarização, como inversão da onda T nas derivações inferolaterais, prolongamento de intervalo QTc e extrassístoles ventriculares frequentes, muitas vezes originadas dos músculos papilares ou da via de saída do ventrículo esquerdo (morfologia de bloqueio de ramo direito).
O diagnóstico de prolapso mitral arritmogênico requer a confirmação da presença de prolapso mitral, com ou sem disjunção do anel mitral. É necessário também identificar arritmias ventriculares, que podem ser frequentes (com densidade de extrassístoles ventriculares igual ou superior a 5% do total no holter) ou complexas (incluindo taquicardia ventricular não sustentada, taquicardia ventricular ou fibrilação ventricular). Além disso, é essencial excluir a presença de outros substratos arrítmicos bem definidos que possam explicar as arritmias observadas. Essas manifestações ao eletrocardiograma — inversão de onda T, prolongamento do intervalo QTc e arritmias ventriculares — são essenciais para a estratificação de risco e o manejo dos pacientes com prolapso mitral arritmogênico.
Referências:
- Eletrocardiograma em 7 aulas – Temas avançados e outros métodos – Friedmann 2ª edição, editora Manole.
- Pastore, CA et al. III Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre análise e emissão de laudos eletrocardiográficos. Arq Brasileiros de Cardiologia. 2016, v. 106, n. 4 Suppl 1. https://doi.org/10.5935/abc.20160054.
- Wave-maven ECG (https://ecg.bidmc.harvard.edu/maven/displist.asp?ans=1)
- https://radiopaedia.org/
- https://www.cardiosurgerypost.com/single-post/2017/08/29/anatomia-da-valva-mitral-conceitos-b%C3%A1sicos-e-armadilhas-cir%C3%BArgicas
- Deng Y, Liu J, Wu S, Li X, Yu H, Tang L, Xie M, Zhang C. Arrhythmic Mitral Valve Prolapse: A Comprehensive Review. Diagnostics (Basel). 2023 Sep 6;13(18):2868. doi: 10.3390/diagnostics13182868.
- Avi Sabbag, et al, EHRA expert consensus statement on arrhythmic mitral valve prolapse and mitral annular disjunction complex in collaboration with the ESC Council on valvular heart disease and the European Association of Cardiovascular Imaging endorsed cby the Heart Rhythm Society, by the Asia Pacific Heart Rhythm Society, and by the Latin American Heart Rhythm Society, EP Europace, Volume 24, Issue 12, December 2022, Pages 1981–2003, https://doi.org/10.1093/europace/euac125
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A radiografia de tórax e o eletrocardiograma são exames que não fecham o diagnóstico de insuficiência mitral, mas são extremamente importantes para ajudar a definir a causa, fatores e complicações associados.
Este é o tema da aula 5 do nosso curso Fundamentos em Doenças Valvares – tudo o que você precisa saber sobre Insuficiência Mitral. Desta vez, conduzida pela Dra. Layara Lipari.
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