Insuficiência Mitral atrial funcional

Lynnie Oberg Arouca Bassoli

Dentre as doenças cardíacas valvares, a Insuficiência Mitral (IM) está entre as valvopatias mais prevalentes no mundo, acometendo mais de 2 milhões de adultos nos EUA conforme dados de 2000 e com perspectiva de dobrar até 2030 (1, 2). Do ponto de vista etiológico, a IM pode ser primária, quando decorre de acometimento dos folhetos valvares, ou secundária, quando a regurgitação acontece em virtude de alterações geométricas ou funcionais no ventrículo esquerdo (VE) e/ou átrio esquerdo (AE). As causas mais conhecidas de IM secundária são aquelas decorrentes de cardiomiopatia dilatada ou isquêmica, em que há uma tração dos folhetos por dilatação ventricular ou por alteração contrátil segmentar do VE, respectivamente.

Devido à crescente prevalência de Fibrilação Atrial (FA) e Insuficiência Cardíaca de Fração de Ejeção Preservada (ICFEp) – uma nova entidade de IM secundária, antes pouco discutida, vem ganhando destaque – a Insuficiência Mitral Atrial Funcional (IMAF). Ela é caracterizada por acometer pacientes com dimensões e função sistólica do VE preservadas, valva mitral estruturalmente normal, mas com dilatação importante do AE (secundária a FA crônica e/ou disfunção diastólica do VE). Por ter fisiopatologia peculiar, sua abordagem difere das demais etiologias de IM; entretanto, as diretrizes atuais ainda não abordam especificamente a IMAF.

Mas, simplificadamente, de que forma a IMAF acontece? Basicamente, algumas doenças podem levar ao aumento isolado do AE, sem que haja dilatação concomitante do VE ou comprometimento estrutural da valva mitral. Classicamente, a FA crônica seria um dos fatores predisponentes à dilatação do AE a longo prazo. Outra situação seria a ICFEp, caracterizada por disfunção diastólica, elevação das pressões de enchimento de VE e, consequentemente, pressões aumentadas em AE, as quais também poderiam ocasionar, mesmo na ausência de FA, a dilatação atrial. Sabe-se que, durante a sístole, há um encurtamento multidirecional do anel mitral (AM), que garante uma aproximação dos folhetos e coaptação adequada. O aumento do AE, todavia, pode levar a dilatação do AM e ocasionar um refluxo valvar, mesmo com a cavidade ventricular dentro dos limites da normalidade.

O curioso é que alguns pacientes têm uma resposta adaptativa diferente e, mesmo com graus de dilatação anular proporcionalmente semelhantes, não desenvolvem a valvopatia na mesma gravidade. Uma das possíveis explicações para isso é que a fisiopatologia não se limita exclusivamente à dilatação do AM, podendo ter outros mecanismos envolvidos. Qualquer alteração no tamanho, formato e/ou dinâmica do AM pode ocasionar IM. Dentre alguns desses outros mecanismos descritos, estão: o crescimento compensatório insuficiente do folheto (como não se trata de estrutura estática, em alguns pacientes foi observado um crescimento compensatório do folheto, determinando redução do grau de IM), perda do formato de sela do AM, redução na contratilidade anular e tração do folheto mitral posterior por tethering atriogênico.

A abordagem específica da IMAF ainda é pouco conhecida. Porém, algumas hipóteses foram levantadas:

  • Terapia Medicamentosa padrão para Insuficiência Cardíaca (IC): Idealmente, deve ser instituída como primeira linha em pacientes sintomáticos, incluindo uso de diuréticos. Embora nenhuma droga tenha demonstrado redução na morbidade e/ou mortalidade no cenário da ICFEp, a terapia padrão de IC pode reduzir as pressões elevadas do AE e prevenir o remodelamento e a fibrose do AE, possivelmente reduzindo o risco de FA e IMAF.
  • Controle de ritmo: Alguns dados de literatura sugerem que estratégias precoces que previnam a dilatação do AE podem ser a chave para o sucesso do tratamento. Dentre elas, a restauração do ritmo sinusal por ablação, principalmente em casos de FA persistente sintomática de início recente (ainda sem remodelamento atrial). Apesar de as evidências não demonstrarem superioridade do controle do ritmo em relação ao controle de frequência em mortalidade, é comprovado que a manutenção do ritmo sinusal garante uma evolução com menores cavidades atriais e menor gravidade de IM.
  • Intervenção valvar: Abordagens que atuem especificamente no anel mitral, como as anuloplastias percutâneas, podem ser razoáveis em pacientes com IMAF importante que permanecem sintomáticos a despeito de terapia medicamentosa otimizada para IC. O efeito do MitraClip na redução da IMAF ainda não foi bem determinado e necessita de mais estudos para definição de seu benefício terapêutico.
    Em suma, considerando todas as peculiaridades descritas da IMAF, a sua crescente prevalência e as possíveis necessidades terapêuticas específicas, sua abordagem deve ser feita de maneira individualizada e novos estudos são necessários para otimizar sua compreensão.

Referências:

  • T. Nkomo, J.M. Gardin, T.N. Skelton, J.S. Gottdiener, C.G. Scott, M. Enriquez-Sarano. Burden of valvular heart diseases: a population-based study. Lancet, 368 (2006), pp. 1005-1011
  • De Marchena, A. Badiye, G. Robalino, et al. Respective prevalence of the different Carpentier classes of mitral regurgitation: a stepping stone for future therapeutic research and development. J Card Surg, 26 (2011), pp. 385-392
  • Fan Y, Wan S, Wong RH-L, Lee AP-W. Atrial functional mitral regurgitation: mechanisms and surgical implications. Asian Cardiovascular and Thoracic Annals. 2020;28(7):421-426. (doi:1177/0218492320941388)
  • Sébastien Deferm, Philippe B. Bertrand, Frederik H. Verbrugge, David Verhaert, Filip Rega, James D. Thomas, Pieter M. Vandervoort, Atrial Functional Mitral Regurgitation: JACC Review Topic of the Week, Journal of the American College of Cardiology, Volume 73, Issue 19, 2019, Pages 2465-2476, ISSN 0735-1097, (https://doi.org/10.1016/j.jacc.2019.02.061)

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