Cardite Reumática Recorrente: como tratar?

Fernanda Castiglioni Tessari | VMariana Pezzute Lopes | Guilherme Sobreira Spina

Quando pensamos em cardiopatia associada a doença reumática, logo pensamos em disfunção valvar e suas sequelas a longo prazo. Entretanto, o que pouco se comenta é que o acometimento pode se estender ao miocárdico, inclusive com disfunção ventricular. A insuficiência cardíaca é pouco comum no primeiro episódio de febre reumática aguda, acometendo menos de 10% dos pacientes com cardite reumática, porém, não parece ser infrequente nos casos de reativação da doença. Neste cenário, evidências atuais sugerem que o envolvimento miocárdico, com ou sem disfunção ventricular, pode ocorrer a despeito da disfunção valvar. Uma série de casos recente incluindo pacientes com doença valvar reumática e insuficiência cardíaca refratária submetidos a transplante cardíaco mostrou que 27,7% dos pacientes apresentavam miocardite não diagnosticada, a qual foi determinada pela presença de nódulos de Aschoff na análise histopatológica.

Mas quando suspeitar de reativação de cardite reumática na fase adulta? De fato, o diagnóstico é desafiador e ainda pouco realizado. A suspeita deve ser sempre levantada naquele paciente que se apresenta com descompensação cardíaca nova, geralmente com disfunção ventricular, na ausência de outra causa mais provável, sendo muitas vezes um diagnóstico de exclusão. A melhora dos sintomas e o remodelamento cardíaco reverso após tratamento específico com corticosteróides, como veremos a seguir, reforça o diagnóstico.

O envolvimento miocárdico pode ser avaliado por meio da realização do 18F-FDG PET/CT ou cintilografia cardíaca com gálio-67, os quais detectam atividade inflamatória no músculo cardíaco (Fig A e B). A ressonância nuclear magnética neste contexto agrega do ponto de vista de diagnóstico diferencial, permitindo descartar outras etiologias de insuficiência cardíaca.

Feito o diagnóstico, o tratamento da cardite reumática baseia-se em 3 pilares:

Primeiro, o tratamento da infecção ativa pelo estreptococo do grupo A de Lancefield, se houver, e a prevenção de recorrência da mesma, preferencialmente com penicilina.

Em segundo lugar, o manejo da insuficiência cardíaca por si só, envolvendo o uso de diuréticos e vasodilatadores para compensação clínica, além de medicações modificadoras de doença, especialmente inibidores da enzima conversora de angiotensina e antagonista mineralocorticoide.

E por último, aquilo que é o grande diferencial no tratamento dessa entidade e que justifica buscarmos ativamente seu diagnóstico: o uso de corticosteroides nos casos de cardite grave. Estudos recentes sugerem que seu emprego se associa a reversão da disfunção ventricular provocada pela miocardite reumática (Fig C.) e, além disso, acredita-se que pode ser benéfico na presença de derrame pericárdico e bloqueio atrioventricular avançado. A droga de escolha é a prednisona ou prednisolona via oral, na dose de 1-2 mg/Kg/dia, até uma dose máxima diária de 80 mg. Em casos muito graves, a metilprednisolona intravenosa pode ser utilizada. Os regimes de duração de tratamento são variáveis, com uma tendência a manter a corticoterapia por 3 a 4 semanas, com desmame lento e progressivo da dose.

Outras terapias já foram testadas, em especial com uso de imunoglobulina intravenosa, porém não foi demonstrado benefício. Além disso, em casos de cardite leve a moderada sem insuficiência cardíaca, nenhum tratamento específico parece ser necessário.

O tratamento cirúrgico de urgência pode ser considerado nos casos em que o paciente cursa com disfunção valvar aguda e instabilidade hemodinâmica refratária às medidas clínicas, sendo, em geral, dada preferência à troca valvar em detrimento da plástica devido a maior dificuldade técnica. Entretanto, devido ao caráter inflamatório da doença, e não havendo urgência na indicação cirúrgica, preconiza-se o tratamento clínico como medida inicial e posterior reavaliação das sequelas miocárdicas e valvares, bem como do status clínico do paciente, para determinar a necessidade ou não de cirurgia valvar.

 

Referências:

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    Rosa VEE, Lopes MP, Spina GS, Soares Junior J, Salazar D, Romero CE, Lottenberg MP, de Santis A, Pires LJNT, Gonçalves LFT, Fernandes JRC, Sampaio RO and Tarasoutchi F. Rheumatic Myocarditis: A Poorly Recognized Etiology of Left Ventricular Dysfunction in Valvular Heart Disease Patients. Front. Cardiovasc. Med. (2021). 8:676694.

    Rosa V, Lopes A, Accorsi T, Fernandes JRC, Spina GS, Sampaio RO, et al. Heart transplant in patients with predominantly rheumatic valvular heart disease. J Heart Valve Dis. (2015) 24:629–34.

    Bowen A, Currie B, Wyber R, Katzenellenbogen J, Marangou J, Noonan S, et al. The 2020 Australian Guideline for Prevention, Diagnosis and Management of Acute Rheumatic Fever and Rheumatic Heart Disease. Darwin: Menzies School of Health Research (2020).

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